sábado, 1 de novembro de 2014

O ANÃO TROMPETISTA

PARTE III


1975. Ano ruim aquele.

Enquanto tanques e coturnos ganhavam mais e mais às ruas do país, Simplício Honorino dos Santos seguia tocando feliz o seu trompete. O mundo que se explodisse. Já sabia tocar de tudo um pouco, do jaz ao soul, blues, rumba, merengue, a comancheira...  As bochechas dele se enchiam como as do incrível Louis; as veias dilatavam-se em seu rosto duro enquanto os olhos esbugalhavam-se parecendo assustadoramente saltar das órbitas. Contudo, a visão não era de dor ou de sofrimento algum, mas de infinita alegria e satisfação plena, pois que a alma daquele anão estava ali, em cada sopro seu. Dir-se-ia um Charles Parker ou um Dizzy Gillespie à brasileira. Mas ele era o Simplício Honorino dos Santos. Fazia questão que o tratassem assim. O público ia ao delírio. Fama. Dinheiro. Nada disso o comovia. Ele só queria tocar seu trompete sossegado e seguir dando orgulho aos pais. Mas aí um dia, sem querer, ele ouviu em uma barbearia, o hino da China e quis aprender a tocar. A infeliz idéia quase levou o pai ao infarto do miocárdio. O pai que ostentava orgulhosamente um imenso retrato do General Medici na sala de casa, proibiu-lhe sumariamente o filho de tocar o hino da China. Só faltava essa, o Hino da China. Mas teimoso como era, o homúnculo batia com teimosia o pezinho outra vez, querendo porque querendo tocar o hino da China. E ele assim o fez, aprendendo às escondidas. Se porventura alguém agora o ofendesse, chamando-o de trompetista anão, cambota ou de cachalote, e também obrigasse a vestir roupas de palhaço, ele tocaria o hino da China. Todos iriam ver só uma coisa. Nunca mais iriam rir dele. Ele não era um palhaço. E foi assim, que no Programa do Bolinha, após ouvir o apresentador chamá-lo de anão trompetista, ele tocou, pela primeira vez, em rede nacional, o Hino da China. Houve um silêncio sepulcral. O medo tomou conta de toda aquela gente petrificada que tentava a todo custo desviar-se de foices e barafundas. O pai caíra infartado na platéia. O apresentador pediu os comerciais. No dia seguinte, como era de se esperar, o programa saíra do ar, e Simplício, obviamente, nunca mais receberia convites pra tocar na televisão ou em rádio alguma. No velório do pai, ele tocou umas notas tristes que eram como flocos brilhantes de neve despencando docemente do Aconcágua. O da mãe, ele não me contou com detalhes, pois que engasgou-se de emoção, mas suponho ter sido algo de espedaçar o coração.


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