sexta-feira, 31 de outubro de 2014

O ANÃO TROMPETISTA

PARTE I            

            Tolice. Nada se explica. Nem mesmo nossa presença no mundo. Ainda sim, vou lhes contar.
Sentava-se sempre nos fundos daquele bar e ali ficava sem que ninguém o percebesse. Um dia, ele sacou seu trompete e pôs-se a tocar: “Ora, um anão trompetista,” estranhei. Todavia, do seu trompete saiam flores, rosas, corais, luas, estrelas, navalhas, corações espicaçados... Tudo enfim saía dali de dentro sem nenhuma explicação aparente. Não obstante – e já refeitos do susto - a clientela punha-se a dançar alegremente embalados pelas imagens e pelo som doce-amargo daquele instrumento encantado. Não tardou para que o dono do bar lhe oferecesse de pronto o emprego. E Simplício Honorino dos Santos (pois este era seu nome de batismo) passou da amargura daquele momento ao prazer absoluto da vida que era o simples deleite de tocar o seu trompete mágico. Foi assim que o conheci, naquele ano e lugar, e ele então me contou um pouco da sua vida.


PARTE II  

              É óbvio que para melhor entendermos este comecinho de história, sugiro que voltemos bem lá atrás – naquele julho de 1960 - que foi o ano que Simplício nascera. Os médicos lutaram heroicamente. A cabeça de tão chata e grande, dificultou-lhe deveras a passagem, levando quase a óbito, a pobre mãe. Mas nascera. Contrariando toda a lógica de um parto digno e natural que confere a uma criança normal. De outro modo, morreria ali dentro estrangulado pelo cordão umbilical. Nas mãos do parturiente a criaturinha estourava de gritar. Um grito estranho e estridente que mais parecia o som agudo de um instrumento afinado. “Um anão, que azar!” Atestara o médico, segurando pelos pés, o tenorzinho. Mas ele viera ao mundo, sim. A muito contra gosto é bem verdade.  Os pais receberam a trágica notícia de que o bebê era um anão. Fazer o quê? Averiguaram a fundo. Não havendo histórico de nanismo na família, nem da parte dele quanto do dela, acabaram aceitando o fardo, julgando tratar-se, talvez, de alguma provação divina.  Quanto à avó, esta não chegaria a ver os feitos do prodigiozinho, posto que  sofrera um aneurisma e morreu. O que apesar da fatalidade, pouca importância tem no curso desta história. Seguimos, portanto. O curioso, e eu me pego pensando, é que ter um anão na família é mesmo um troço estranho e engraçado. Entretanto, no caso de Simplício Honorino dos Santos, não se tratava de um anão qualquer; desses que costumeiramente vemos todos os dias na televisão levando chutes e bordoadas no traseiro para levar alegria aos seus lares. Não, não era. Simplício era excepcional. Único. O maior trompetista que conheci em vida. Um colosso. Transformava em cifras vivas e pulsantes, toda a dor e alegria que transbordava dentro dele.
Mas você não acredita. Tudo bem. Sigo contando. O fato é que Simplício Honorino dos Santos foi crescendo calado, arredio; carrancudo pelos cantos da casa. O pai que era músico, e que tocava na banda da Marinha Brasileira foi quem dissera à esposa:
“Vamos fazer deste menino, alguém muito importante, Marinalva.” Aos cinco, portanto, deram-lhe uma chuteira e uma camisa do Flamengo. Mas o moleque, que tinha as pernas tortas, chutava errado. Um ano depois, presentearam-lhe com um disco do Simonal, que furioso, ele arremessaria à parede da sala, espatifando-o. Aos onze, ganhara um violão, no que ele selvagemente roera-lhe as cordas. Nada o apetecia. Na sua rua, recebera dos coleguinhas o triste alcunho de cachalote e de cambota, em razão de sua enorme cabeça chata e de suas pernas terrivelmente tortas. O pai, entrementes, não desistia dele – e em uma de suas viagens ao Mediterrâneo, naquele ano de 72, trouxera de lá um trompete de verdade que comprara num bazar de quinquilharias, em um Mercado Persa. O velho que lhe vendeu, advertiu-lhe: “Isto não é um instrumento comum, meu senhor!”
E de fato não era mesmo, garanto-lhes. A esposa estranhou: “Um trompete, Honorino?” O menino olhou interessado pra aquilo. Pareceu gostar. Soprou uma vez. Outra. Depois outra. Foi soprando, até não largar mais do notável instrumento. Foi aprendendo rápido a tocar. Tocava o dia todo. O curioso é que, à medida que ele ia aprendendo a arrancar as primeiras notas daquele instrumento, saiam de lá, borboletinhas coloridas. O seu quarto logo se enchera de borboletinhas coloridas, de variados tamanhos. Esse era o seu mundo até ali: um mundo de borboletinhas coloridas. Mas quando estava profundamente triste, machucado por dentro, porque o chamavam de cambota ou de cachalote, ele fazia sair de seu trompete, um montão de estrelinhas mortas. E todos estes acontecimentos inverossímeis, eu de fato não saberia explicar aos senhores, pois que sentimentos como estes não se explicam, não é mesmo? Óbvio que o tal fenômeno atraíra a atenção dos pais, fazendo-lhes tomar uma decisão muito importante:
                “Nosso filho é um gênio, Marinalva, e aqui no norte, ele não se cria, não.” Mudaram-se então daquela cidade, para uma maior. Uma cidade onde pudessem oportunizar e apresentar ao mundo, o brilhantismo do filho. Estabelecidos naquele novo lugar, levaram-no então a um programa de televisão. Àquela altura, contava catorze. Tornou-se a sensação dos programas vespertinos de domingo. Naquela época, é bom que se diga já se chutavam pra valer traseiros de anões, mas ele tinha o trompete, e dele fazia sair coisas engraçadas. É certo que sua popularidade fora crescendo, não só empolgando o público de casa, mas àqueles que lotavam o auditório, enchendo de orgulho os pais e ainda rendendo fabulosos lucros aos patrocinadores e empresários da televisão que exploravam até a última gota o talento extraordinário do anão. Só que havia um porém: Simplício Honorino dos Santos, e com toda razão, detestava quando o tratavam de anão trompetista:

“E com vocês, o Anão Trompetista!”. Anunciava o apresentador.

“Simplício Honorino dos Santos.” Corrigia ele, batendo o pezinho.

“Simplício, o anão trompetista!” Insistia o apresentador. A platéia espocava de rir. Não da teimosia do anão, que como já disse, era justa e franca, mas dele mesmo, ali sozinho, pernas tortas, metido em roupas de palhaço, largado no centro daquele picadeiro eletrônico, com todos aqueles holofotes ardendo sobre dele. Mas bastou para que soprasse o seu trompete - enchendo de claves coloridas todo aquele ambiente – para que o público, embasbacado, logo viesse abaixo, fazendo estrugir aplausos de todos os lados. A propósito disto, o patrão e os patrocinadores do programa queriam saber como ele fazia aqueles truques ilusionistas tão bem feitos. Mas não se tratava de truque algum, asseguro-lhes, mas de sentimentos vivos e verdadeiros que, inexplicavelmente, se corporificavam, a ponto de todos senti-los, ao leve toque das mãos.  Como explicar? Nem ele próprio sabia. O barato era tocar o seu trompete, alegrar o seu coração e de quem mais o ouvia. Enfim, fazer o que ele sabia fazer de melhor na vida que era tocar o seu instrumento e pronto. Não foi para isso que viera ao mundo?


Caminhamos pro três.

quinta-feira, 30 de outubro de 2014

a louca


I

as cores que surgem no fundo desta tela são estas mesmas.e elas permanecerão assim até o final deste conto. não por mera vaidade.mas porque a pureza só existe em preto e branco.

II

bom. eu estava atrás de um começo. agora que fecho meus olhos profundamente, me vejo imerso nas lembranças do passado que me chegam de um túnel escuro. uma data lá no fundo. aquela que a gente nunca esquece. sexta-feira da paixão.o dia da crucificação de Nosso Senhor. mas, o pior mesmo seria o dia seguinte. o da malhação de Judas. ainda contemplo um céu todo cinzento. euforia na rua. gritaria. os bonecos de pano pendurados nos postes. o dia em que apedrejaram a louca. que a expulsaram dali para sempre.

III

a louca ainda está dentro da minha cabeça. de minhas lembranças. de meu passado.

IV

eu tinha por volta dos meus doze anos de idade. é isso mesmo? eu tinha por volta dos meus doze anos de idade. é. nessa idade, ainda olhamos e sentimos o perfume das coisas com mais pureza. e havia os ensinamentos de minha mãe que me educavam a ser bom. a preservar minha índole de menino. passados todos estes anos, agora crescido, metade humano, metade besta, a louca me vem em fragmentos. como uma fotografia desbotada. descolorida. rasgada ao meio. tarde de abril de 1982. ainda é, posto que tenho meus olhos bem fechados como de um chinês orando baixinho.

V

jogávamos bola na rua, quando a louca apareceu. veio descendo o Beco dos Passos com seu rebolado sensual. uma flor no cabelo. um short amarelo, apertado e curto, agarrado às coxas grossas e alvas porque a louca era branca. corpulenta e terrivelmente branca. ela tinha umas sobrancelhas que eram negras e que se juntavam como as de Frida Kalo. e seus olhos eram de um esverdeado de cegar a gente. a louca era estranhamente bonita. mas, louca. não batia bem da cabeça mesmo não. falava bem no começo coisas que a gente até entendia. mas, depois desbaratava a falar palavras estranhas. e gargalhava. gargalhava alto e cantava uma canção de seu mundo que a gente nunca ouvira na vida. assim era a louca. nunca soube sua idade. nem o seu nome. de onde viera. para onde ia. da primeira vez que a vimos atravessando a rua, paramos com a bola. ela sorriu de lado com a flor no cabelo agradecendo e foi descendo devagar a Boulevar Sá Peixoto, rumo ao bar do Luizinho que ficava bem lá embaixo.

VI

eu nunca tive medo da louca. que mal ela poderia me causar. apesar de seu olhar sedutor e venenoso, a louca tinha alma de criança. o Curupira e o Joca é que tinham medo da louca por influência dos pais. Já eu não. o que eu achava eram aqueles olhos bonitos e faiscantes. e o seu corpo também mexia com alguma coisa lá dentro de mim. nessa época as espinhas e os pelinhos do meu púbis já cresciam afoitos. faziam um pouco de cócegas porque cresciam pontudos e ferozes e minha voz mudava para um tom mais grave. engraçado, né? digo, essas transformações que acontecem no corpo da gente. um dia baixei o meu calção de jogador e mostrei para minha mãe os pentelhinhos que brilhavam. ela apenas sorriu me dizendo: “já tá ficando machinho, meu filho.” as mães, sei lá. são engraçadas. e loucas também. nunca mais esqueço esta tarde. o ferro de gomar. o vento seco estalando nas folhas da goiabeira do quintal. o sorriso encantador de Eunice. o tempo de vida é um instalo. um sopro. um bater de pestanas. o coito de um louva-deus. mas é que havia a louca. ela atrapalhava a gente jogando bola na chuva. suas coxas bem suadas e grossas. suas sobrancelhas negras que se juntavam num semblante gravemente alegre. aquele seu cheiro forte. ela só queria chutar a bola pra longe e gargalhar. gargalhava bem alto olhando o céu com sua mão na cintura feito uma pombagira. eu francamente não via mal algum na louca. nenhum demônio escondido nela. parecia até uma criança como nós. mas era só eu que pensava assim. a mãe do Curupira e do Joca e também  (já ia esquecendo) do Betinho, não.proibiram eles de jogar bola na rua com a louca. é que a louca podia atacá-los.mas isso era invenção das beatas. talvez por inveja da louca?

II PARTE

“a louca mora na Groelandia!” foi o Aritana que nos trouxe a noticia enquanto jogávamos uma partida de botões. o Aritana era filho do seu Nonatinho da taberna do canto. bem encostadinho na do seu Defunto. nem sei se ainda está vivo, o pobre do Aritana."foi ela que disse quando a gente tomava sorvete.” fomos ver no mapa onde ficava a Groelândia. putz, era um lugar longe e frio. e lá  tinha muitos pingüins. será que era por isso que ela tinha aquela pele bem clarona,  e seus dois olhos eram esverdeados que doíam nos meus? me perguntava. não que eu estivesse apaixonado pela louca. sei lá. a louca não era feia, não. só era diferente. tinha classe. a maneira como ela sentava no bar do Luizinho com as pernas cruzadas segurando alto seu copo de cerveja. e às vezes que ela me olhava com elegância por sobre a borda do copo. mas ela olhava era pra todos os homens lá do bar. Inclusive pro Diabo Ruivo que a seduziu.

*
só era chato quando a louca excedia-se na bebida. era mesmo assustador. ela dançava, subia nas mesas; cantava e tirava a roupa. as beatas que passavam à tardinha pra ir pra missa esconjuravam a louca: “demônio!” loucos mesmo eram os que a levavam  para os fundos do bar do Luizinho ou do Defunto e dela se aproveitavam. ela saía de lá descabelada, arranhada, mas com o dinheiro do serviço preso na calcinha. e voltava a beber. quando descobriram que ela trepava nos banheiros, a expulsaram dos bares. a louca já estava passando dos limites...

***
é que a louca não tinha onde dormir, sabe? naquela quinta feira, quando ia pra missa  com minha mãe, eu vi a louca dormindo suja, no banco da pracinha, sob o jambeiro. dormia no sujo e no relento. mesmo assim, ainda continuava viva e bela aos meus olhos. e me sorria. me sorria sempre. dentro da igreja, eu olhava pra cruz de nosso senhor que sofria naqueles dias estranhos e cruéis e eu me perguntava: “os loucos tem um demônio no corpo, Deus?” “Psiuuu, que já já vem as bolachinhas.”Respondia  minha mãe. as bolachinhas eram as hóstias que dona Betinha – nossa vizinha - roubava do altar pra mim e que espantava pra longe meus pensamentos perigosos de menino. as bolachinhas tinham um gosto engraçado de papel. eu mascava aquilo como se fosse uma droga legal, anestesiante. mas na verdade, não tinha gosto de nada. eu olhava pra cruz de Deus e sorria. “se eu pudesse, juro que levava a louca pra comer e dormir lá em casa, Deus.” a lua fria lá em cima, ás vezes me faz pensar na louca. até hoje não entendo a frieza humana. sua bestialidade. seu egoísmo. o homem é um egoísta,  besta e miserável de alma. ainda povoa este planeta com sua bestialidade e com sua falta de amor ao próximo.

***
não mexam nas cores, já disse.deixem-nas como estão.

PARTE III

havia na minha rua  uns maus elementos de verdade: o Marreta, o Deka (conhecido como o diabo ruivo) e o Zé Bigorna. eles moravam no beco da Paz, lá embaixo, quase chegando na beira. eles eram mais velhos que nós, feios, sujos e malvados, como no filme do Etore Escola. eles tocavam o terror na época. comiam o Chiquinho, o Ângelus e o resto da gurizada nas tubulações de ferro da Codrasa que estava em construção. também era perigoso tomar banho na Ponta Branca quando o trio aparecia por lá. sempre tinha alguns de nós que eram seduzidos e arrastados para dentro das embarcações fantasmas. lembro que escapei do Diabo Ruivo muitas vezes. mas foi ele que seduziu a louca. arrastou ela para um balcão abandonado no Beco São Pedro. isso foi na sexta feira da paixão. quando enfiaram aqueles pregos nas mãos de nosso senhor e o penduraram na cruz. ainda me lembro. o céu todo escurecido como graxa. o véu do tempo se fechando sobre a humanidade afogada em pecados. “quem é capaz de enfiar pregos nas mãos de quem nos ama, mãe?” “Psssiuuu, que já já vem as bolachinhas...” Ah, quanta saudade. vontade que tenho de encostar minha cabeça em seu colo outra vez. mas isto não é mais possível. quem nos trouxe a notícia foi o Curió: “ei, vão currar a louca no galpão do Lindoso.” a molecada que jogava bola na rua correu toda pra lá. fizeram fila pra brechar. eram quase seis horas da tarde daquela sexta feira da paixão. eu podia sentir os pregos sendo enterrados na carne de Deus. a gurizada se revezava pra ver pelas brechas de madeira do galpão o corpo branco e nu da louca que brilhava na escuridão. ela sorria. um sorriso esganiçado. parecia querer. gostar. mas era por causa do Diabo Ruivo que a seduziu. o menos feio dos três. o que tinha os caninos perfeitos. Era. deitaram ela toda nua sobre uma mesa de madeira. (não tentem evocar outra cor, eu já disse. deixem o fundo como está.) mas eu acho que era pra mais de cinco marmanjões daqueles. todos nus formando uma fila como cachorros no cio. deleitavam-se da louca. não era uma cena boa de se ver, moço. era sinistro. cruel. desumano. não era uma cena boa de se ver. os meninos com seus pipis de fora, se masturbando do meu lado. a louca gemia lá dentro no galpão. a pele de suas coxas brilhando no escuro. eram umas coxas grossas e enormes. “ei, não vai bater uma com a gente não, Augusto?” olhei com raiva pro Aritana. os outros me olhavam. me desafiavam. “o pipi dele é pequeno, igual de mulherzinha, é por isso.” falou o Três Pernas. riram de mim. não era, não. me ajoelhei e, com lágrimas nos olhos, tirei meu pinto pra fora. “vou provar”. “olha como ele bate punheta!” riram ainda mais com a minha falta de jeito. a louca gritava lá dentro. gemia. gritava. urrava. tiveram que tapar a boca dela. foi só quando o Diabo Ruivo a penetrou, foi que ela aquietou-se. relaxou os músculos. os meninos alucinados, matavam-se na bronha. eu fingia fazer o mesmo. fingia que estava gostando. mas no fundo eu não estava não. eu tinha era vergonha daquilo. de mim. pena da louca. nunca fui igual aos outros meninos mesmo. acho até que não sou normal. alguém lá de dentro viu a gente brechando. e aí tivemos que correr de volta pra rua...

IV

a gente não consegue dormir direito com uma imagem destas na cabeça, não é mesmo? naquele momento de minha vida, não. é natural que compreendesse muito pouco da vida e das atitudes humanas. por isso, eu buscava alento nas preces. a imagem da louca sendo currada e apedrejada, até hoje não me sai da cabeça.  mas havia o sábado de aleluia pra me fazer esquecer.  o dia da malhação de Judas. o dia mais alegre da semana santa. não perdia aquele dia por nada. cedinho, já estava de pé, ganhando as ruas para ver os bonecos de pano  arrancados dos postes, levando pauladas, sendo pisoteados e estripados pela gurizada. fazíamos daquilo uma grande celebração. a celebração de nossas vidas. não havia maldade. tudo não passava de uma brincadeira pura de criança. bem cedo abríamos as janelas de casa e dávamos logo de cara com os bonecos pendurados nos postes. um montão deles. era assustador. mas como era legal. um barato. a gente se divertia á beça. o Judas podia ser qualquer um. da pessoa mais influente (como do meio político, por exemplo) até á pessoa mais comum, moradora do bairro. certa vez, a molecada da rua de cima fez um Judas em homenagem à dona Agaí, que acreditavam ser uma velha bruxa que se transformava em porca nas noites de sexta feira pra correr atrás da meninada que jogava bola na frente da sua casa, no Beco dos Passos. mas dona Agaí era só uma velha solitária e rabugenta que não tinha ninguém na vida e não fazia mal a ninguém. o fato é que hoje não se vê mais Judas nos sábados de aleluia, você ainda vê? os Judas foram esquecidos. tudo é tão sem graça hoje. sem sentido. malham-se pessoas de carne e osso em vez dos bonecos.

***


sei que aquele dia era de uma claridade cinzenta e enevoada. uma manhã triste, fria, estranha. olhei para o alto e os traidores de pano permaneciam  todos ali, pendurados nos postes e nas árvores.  fui arriando  devagar meu pau de bater em Judas, logo que vi a louca descendo a Boulevard Sá Peixoto, bêbada e suja de sangue. uma multidão de gente seguia atrás dela, xingando-a e atirando-lhes pedras. pessoas de todas as idades. até crianças. a louca descia suja, descabelada e coberta de sangue. por onde passava era xingada. escorraçada. não havia ninguém pela louca. para se defender, ela parava um instante, arriava seu short e mostrava seu sexo menstruado. depois, com as mãos na cintura, gargalhava alto para o céu, soltando aquela sua risada diabólica de louca. a multidão a empurrava para o final da rua. a enxotavam. queriam vê-la longe. algumas das  beatas comandavam o pilotão de fuzilamento. a louca cuspia nelas e as xingava com palavras incompreensíveis. os judas permaneciam pendurados. esquecidos. malhavam a louca, em vez dos bonecos. sentimentos estranhos brotavam em mim. ódio e compaixão. Impotência e justiça. eu não sei o quê mais que me faziam fechar os punhos e encher meu coração de angústia e revolta. o leitor talvez não acredite, mas é que fui levado por um estranho impulso ou algo parecido, que me obrigou a aproximar-se da louca, assim que a deixaram em paz, no canto da rua, bem no cruzamento da Boulevard  com a Manuel Urbano. ela ofegava e fedia á beça quando segurei na sua mão. mas não liguei para isso. era um dia mesmo frio e visagento. o céu desmaiado, coberto de graxa.  um dia sem cor.  mas a pele da louca era macia quando peguei em sua mão. suas unhas compridas e pintadas de vermelho. não sei o que deu em mim que não tive medo ou vergonha da louca. a chamei para ir lá em casa. ela até olhou para mim. aqueles seus olhos vivos, comoventes que me atravessavam. a louca não me faria algum mal. só estranhou que eu tivesse pegado em sua mão. que a conduzisse. sorria me olhando de cima à baixo.  descemos a rua de mãos dadas. a louca sorrindo. todos olhando. o seu Apaga Luz da janela balançando sua cabeça como se dissesse, “o Augusto ficou louco.” chegando em casa com a louca, pedi-lhe que me esperasse na varanda que eu ia buscar comida e roupas para ela. no que ela disse, “então ta!” a deixei sorrindo de gratidão, sentada no pátio de casa, olhando as catraias no rio. precisava falar pra Eunice sobre a louca. ela tomou um susto enorme quando foi olhar na janela: “ficou doido, Augusto? trazer esta mulher para casa?” mesmo assim, ela foi preparar o café: pão, manteiga, ovos e até geléia. as mães. também separou uma toalha e uma muda de roupas. empilhou-as direitinho. “não sei onde andas com a cabeça, meu filho.” no fundo minha mãe sorria de meu desatino. lembro do brilho de seus olhos, da sua face clara, de seu sorriso materno. de sua lealdade de mãe. ah, que vontade de novo de encostar minha cabeça em seu colo e descansar. pedir-lhe perdão por tudo. aninhar-me em seu ventre morno para sempre.  mas um dia tudo foi. restam agora folhas secas no chão. varridas pelo tempo que não volta nunca mais. “Pronto! leva isto pra ela e deixe-a ir embora. mamãe te ama.” atravessei todo contente o corredor de casa. um corredor largo e generoso. ao chegar no pátio, dei com ele vazio. a louca não estava mais lá. olhei para os lados. para o céu também. não havia sinal algum da louca. estranho. nem mesmo seu cheiro. nada. apenas um vento. o ar frio e puro daquela manhã em preto e branco.  
            

a louca


PARTE I

as cores que surgem no fundo desta tela são estas mesmas.e elas permanecerão assim até o final deste conto. não por mera vaidade.mas porque a pureza só existe em preto e branco.

II

bom. eu estava atrás de um começo. agora que fecho meus olhos profundamente, me vejo imerso nas lembranças do passado que me chegam de um túnel escuro. uma data lá no fundo. aquela que a gente nunca esquece. sexta-feira da paixão.o dia da crucificação de Nosso Senhor. mas, o pior mesmo seria o dia seguinte. o da malhação de Judas. ainda contemplo um céu todo cinzento. euforia na rua. gritaria. os bonecos de pano pendurados nos postes. o dia em que apedrejaram a louca. que a expulsaram dali para sempre.

III

a louca ainda está dentro da minha cabeça. de minhas lembranças. de meu passado.

IV

eu tinha por volta dos meus doze anos de idade. é isso mesmo? eu tinha por volta dos meus doze anos de idade. é. nessa idade, ainda olhamos e sentimos o perfume das coisas com mais pureza. e havia os ensinamentos de minha mãe que me educavam a ser bom. a preservar minha índole de menino. passados todos estes anos, agora crescido, metade humano, metade besta, a louca me vem em fragmentos. como uma fotografia desbotada. descolorida. rasgada ao meio. tarde de abril de 1982. ainda é, posto que tenho meus olhos bem fechados como de um chinês orando baixinho.

V

jogávamos bola na rua, quando a louca apareceu. veio descendo o Beco dos Passos com seu rebolado sensual. uma flor no cabelo. um short amarelo, apertado e curto, agarrado às coxas grossas e alvas porque a louca era branca. corpulenta e terrivelmente branca. ela tinha umas sobrancelhas que eram negras e que se juntavam como as de Frida Kalo. e seus olhos eram de um esverdeado de cegar a gente. a louca era estranhamente bonita. mas, louca. não batia bem da cabeça mesmo não. falava bem no começo coisas que a gente até entendia. mas, depois desbaratava a falar palavras estranhas. e gargalhava. gargalhava alto e cantava uma canção de seu mundo que a gente nunca ouvira na vida. assim era a louca. nunca soube sua idade. nem o seu nome. de onde viera. para onde ia. da primeira vez que a vimos atravessando a rua, paramos com a bola. ela sorriu de lado com a flor no cabelo agradecendo e foi descendo devagar a Boulevar Sá Peixoto, rumo ao bar do Luizinho que ficava bem lá embaixo.

VI

eu nunca tive medo da louca. que mal ela poderia me causar. apesar de seu olhar sedutor e venenoso, a louca tinha alma de criança. o Curupira e o Joca é que tinham medo da louca por influência dos pais. Já eu não. o que eu achava eram aqueles olhos bonitos e faiscantes. e o seu corpo também mexia com alguma coisa lá dentro de mim. nessa época as espinhas e os pelinhos do meu púbis já cresciam afoitos. faziam um pouco de cócegas porque cresciam pontudos e ferozes e minha voz mudava para um tom mais grave. engraçado, né? digo, essas transformações que acontecem no corpo da gente. um dia baixei o meu calção de jogador e mostrei para minha mãe os pentelhinhos que brilhavam. ela apenas sorriu me dizendo: “já tá ficando machinho, meu filho.” as mães, sei lá. são engraçadas. e loucas também. nunca mais esqueço esta tarde. o ferro de gomar. o vento seco estalando nas folhas da goiabeira do quintal. o sorriso encantador de Eunice. o tempo de vida é um instalo. um sopro. um bater de pestanas. o coito de um louva-deus. mas é que havia a louca. ela atrapalhava a gente jogando bola na chuva. suas coxas bem suadas e grossas. suas sobrancelhas negras que se juntavam num semblante gravemente alegre. aquele seu cheiro forte. ela só queria chutar a bola pra longe e gargalhar. gargalhava bem alto olhando o céu com sua mão na cintura feito uma pombagira. eu francamente não via mal algum na louca. nenhum demônio escondido nela. parecia até uma criança como nós. mas era só eu que pensava assim. a mãe do Curupira e do Joca e também  (já ia esquecendo) do Betinho, não.proibiram eles de jogar bola na rua com a louca. é que a louca podia atacá-los.mas isso era invenção das beatas. talvez por inveja da louca?

II PARTE

“a louca mora na Groelandia!” foi o Aritana que nos trouxe a noticia enquanto jogávamos uma partida de botões. o Aritana era filho do seu Nonatinho da taberna do canto. bem encostadinho na do seu Defunto. nem sei se ainda está vivo, o pobre do Aritana."foi ela que disse quando a gente tomava sorvete.” fomos ver no mapa onde ficava a Groelândia. putz, era um lugar longe e frio. e lá  tinha muitos pingüins. será que era por isso que ela tinha aquela pele bem clarona,  e seus dois olhos eram esverdeados que doíam nos meus? me perguntava. não que eu estivesse apaixonado pela louca. sei lá. a louca não era feia, não. só era diferente. tinha classe. a maneira como ela sentava no bar do Luizinho com as pernas cruzadas segurando alto seu copo de cerveja. e às vezes que ela me olhava com elegância por sobre a borda do copo. mas ela olhava era pra todos os homens lá do bar. Inclusive pro Diabo Ruivo que a seduziu.

*
só era chato quando a louca excedia-se na bebida. era mesmo assustador. ela dançava, subia nas mesas; cantava e tirava a roupa. as beatas que passavam à tardinha pra ir pra missa esconjuravam a louca: “demônio!” loucos mesmo eram os que a levavam  para os fundos do bar do Luizinho ou do Defunto e dela se aproveitavam. ela saía de lá descabelada, arranhada, mas com o dinheiro do serviço preso na calcinha. e voltava a beber. quando descobriram que ela trepava nos banheiros, a expulsaram dos bares. a louca já estava passando dos limites...
***
é que a louca não tinha onde dormir, sabe? naquela quinta feira, quando ia pra missa  com minha mãe, eu vi a louca dormindo suja, no banco da pracinha, sob o jambeiro. dormia no sujo e no relento. mesmo assim, ainda continuava viva e bela aos meus olhos. e me sorria. me sorria sempre. dentro da igreja, eu olhava pra cruz de nosso senhor que sofria naqueles dias estranhos e cruéis e eu me perguntava: “os loucos tem um demônio no corpo, Deus?” “Psiuuu, que já já vem as bolachinhas.”Respondia  minha mãe. as bolachinhas eram as hóstias que dona Betinha – nossa vizinha - roubava do altar pra mim e que espantava pra longe meus pensamentos perigosos de menino. as bolachinhas tinham um gosto engraçado de papel. eu mascava aquilo como se fosse uma droga legal, anestesiante. mas na verdade, não tinha gosto de nada. eu olhava pra cruz de Deus e sorria. “se eu pudesse, juro que levava a louca pra comer e dormir lá em casa, Deus.” a lua fria lá em cima, ás vezes me faz pensar na louca. até hoje não entendo a frieza humana. sua bestialidade. seu egoísmo. o homem é um egoísta,  besta e miserável de alma. ainda povoa este planeta com sua bestialidade e com sua falta de amor ao próximo.

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não mexam nas cores, já disse.deixem-nas como estão.


PARTE III

havia na minha rua  uns maus elementos de verdade: o Marreta, o Deka (conhecido como o diabo ruivo) e o Zé Bigorna. eles moravam no beco da Paz, lá embaixo, quase chegando na beira. eles eram mais velhos que nós, feios, sujos e malvados, como no filme do Etore Escola. eles tocavam o terror na época. comiam o Chiquinho, o Ângelus e o resto da gurizada nas tubulações de ferro da Codrasa que estava em construção. também era perigoso tomar banho na Ponta Branca quando o trio aparecia por lá. sempre tinha alguns de nós que eram seduzidos e arrastados para dentro das embarcações fantasmas. lembro que escapei do Diabo Ruivo muitas vezes. mas foi ele que seduziu a louca. arrastou ela para um balcão abandonado no Beco São Pedro. isso foi na sexta feira da paixão. quando enfiaram aqueles pregos nas mãos de nosso senhor e o penduraram na cruz. ainda me lembro. o céu todo escurecido como graxa. o véu do tempo se fechando sobre a humanidade afogada em pecados. “quem é capaz de enfiar pregos nas mãos de quem nos ama, mãe?” “Psssiuuu, que já já vem as bolachinhas...” Ah, quanta saudade. vontade que tenho de encostar minha cabeça em seu colo outra vez. mas isto não é mais possível. quem nos trouxe a notícia foi o Curió: “ei, vão currar a louca no galpão do Lindoso.” a molecada que jogava bola na rua correu toda pra lá. fizeram fila pra brechar. eram quase seis horas da tarde daquela sexta feira da paixão. eu podia sentir os pregos sendo enterrados na carne de Deus. a gurizada se revezava pra ver pelas brechas de madeira do galpão o corpo branco e nu da louca que brilhava na escuridão. ela sorria. um sorriso esganiçado. parecia querer. gostar. mas era por causa do Diabo Ruivo que a seduziu. o menos feio dos três. o que tinha os caninos perfeitos. Era. deitaram ela toda nua sobre uma mesa de madeira. (não tentem evocar outra cor, eu já disse. deixem o fundo como está.) mas eu acho que era pra mais de cinco marmanjões daqueles. todos nus formando uma fila como cachorros no cio. deleitavam-se da louca. não era uma cena boa de se ver, moço. era sinistro. cruel. desumano. não era uma cena boa de se ver. os meninos com seus pipis de fora, se masturbando do meu lado. a louca gemia lá dentro no galpão. a pele de suas coxas brilhando no escuro. eram umas coxas grossas e enormes. “ei, não vai bater uma com a gente não, Augusto?” olhei com raiva pro Aritana. os outros me olhavam. me desafiavam. “o pipi dele é pequeno, igual de mulherzinha, é por isso.” falou o Três Pernas. riram de mim. não era, não. me ajoelhei e, com lágrimas nos olhos, tirei meu pinto pra fora. “vou provar”. “olha como ele bate punheta!” riram ainda mais com a minha falta de jeito. a louca gritava lá dentro. gemia. gritava. urrava. tiveram que tapar a boca dela. foi só quando o Diabo Ruivo a penetrou, foi que ela aquietou-se. relaxou os músculos. os meninos alucinados, matavam-se na bronha. eu fingia fazer o mesmo. fingia que estava gostando. mas no fundo eu não estava não. eu tinha era vergonha daquilo. de mim. pena da louca. nunca fui igual aos outros meninos mesmo. acho até que não sou normal. alguém lá de dentro viu a gente brechando. e aí tivemos que correr de volta pra rua...

PARTE IV

a gente não consegue dormir direito com uma imagem destas na cabeça, não é mesmo? naquele momento de minha vida, não. é natural que compreendesse muito pouco da vida e das atitudes humanas. por isso, eu buscava alento nas preces. a imagem da louca sendo currada e apedrejada, até hoje não me sai da cabeça.  mas havia o sábado de aleluia pra me fazer esquecer.  o dia da malhação de Judas. o dia mais alegre da semana santa. não perdia aquele dia por nada. cedinho, já estava de pé, ganhando as ruas para ver os bonecos de pano  arrancados dos postes, levando pauladas, sendo pisoteados e estripados pela gurizada. fazíamos daquilo uma grande celebração. a celebração de nossas vidas. não havia maldade. tudo não passava de uma brincadeira pura de criança. bem cedo abríamos as janelas de casa e dávamos logo de cara com os bonecos pendurados nos postes. um montão deles. era assustador. mas como era legal. um barato. a gente se divertia á beça. o Judas podia ser qualquer um. da pessoa mais influente (como do meio político, por exemplo) até á pessoa mais comum, moradora do bairro. certa vez, a molecada da rua de cima fez um Judas em homenagem à dona Agaí, que acreditavam ser uma velha bruxa que se transformava em porca nas noites de sexta feira pra correr atrás da meninada que jogava bola na frente da sua casa, no Beco dos Passos. mas dona Agaí era só uma velha solitária e rabugenta que não tinha ninguém na vida e não fazia mal a ninguém. o fato é que hoje não se vê mais Judas nos sábados de aleluia, você ainda vê? os Judas foram esquecidos. tudo é tão sem graça hoje. sem sentido. malham-se pessoas de carne e osso em vez dos bonecos.

***

sei que aquele dia era de uma claridade cinzenta e enevoada. uma manhã triste, fria, estranha. olhei para o alto e os traidores de pano permaneciam  todos ali, pendurados nos postes e nas árvores.  fui arriando  devagar meu pau de bater em Judas, logo que vi a louca descendo a Boulevard Sá Peixoto, bêbada e suja de sangue. uma multidão de gente seguia atrás dela, xingando-a e atirando-lhes pedras. pessoas de todas as idades. até crianças. a louca descia suja, descabelada e coberta de sangue. por onde passava era xingada. escorraçada. não havia ninguém pela louca. para se defender, ela parava um instante, arriava seu short e mostrava seu sexo menstruado. depois, com as mãos na cintura, gargalhava alto para o céu, soltando aquela sua risada diabólica de louca. a multidão a empurrava para o final da rua. a enxotavam. queriam vê-la longe. algumas das  beatas comandavam o pilotão de fuzilamento. a louca cuspia nelas e as xingava com palavras incompreensíveis. os judas permaneciam pendurados. esquecidos. malhavam a louca, em vez dos bonecos. sentimentos estranhos brotavam em mim. ódio e compaixão. Impotência e justiça. eu não sei o quê mais que me faziam fechar os punhos e encher meu coração de angústia e revolta. o leitor talvez não acredite, mas é que fui levado por um estranho impulso ou algo parecido, que me obrigou a aproximar-se da louca, assim que a deixaram em paz, no canto da rua, bem no cruzamento da Boulevard  com a Manuel Urbano. ela ofegava e fedia á beça quando segurei na sua mão. mas não liguei para isso. era um dia mesmo frio e visagento. o céu desmaiado, coberto de graxa.  um dia sem cor.  mas a pele da louca era macia quando peguei em sua mão. suas unhas compridas e pintadas de vermelho. não sei o que deu em mim que não tive medo ou vergonha da louca. a chamei para ir lá em casa. ela até olhou para mim. aqueles seus olhos vivos, comoventes que me atravessavam. a louca não me faria algum mal. só estranhou que eu tivesse pegado em sua mão. que a conduzisse. sorria me olhando de cima à baixo.  descemos a rua de mãos dadas. a louca sorrindo. todos olhando. o seu Apaga Luz da janela balançando sua cabeça como se dissesse, “o Augusto ficou louco.” chegando em casa com a louca, pedi-lhe que me esperasse na varanda que eu ia buscar comida e roupas para ela. no que ela disse, “então ta!” a deixei sorrindo de gratidão, sentada no pátio de casa, olhando as catraias no rio. precisava falar pra Eunice sobre a louca. ela tomou um susto enorme quando foi olhar na janela: “ficou doido, Augusto? trazer esta mulher para casa?” mesmo assim, ela foi preparar o café: pão, manteiga, ovos e até geléia. as mães. também separou uma toalha e uma muda de roupas. empilhou-as direitinho. “não sei onde andas com a cabeça, meu filho.” no fundo minha mãe sorria de meu desatino. lembro do brilho de seus olhos, da sua face clara, de seu sorriso materno. de sua lealdade de mãe. ah, que vontade de novo de encostar minha cabeça em seu colo e descansar. pedir-lhe perdão por tudo. aninhar-me em seu ventre morno para sempre.  mas um dia tudo foi. restam agora folhas secas no chão. varridas pelo tempo que não volta nunca mais. “Pronto! leva isto pra ela e deixe-a ir embora. mamãe te ama.” atravessei todo contente o corredor de casa. um corredor largo e generoso. ao chegar no pátio, dei com ele vazio. a louca não estava mais lá. olhei para os lados. para o céu também. não havia sinal algum da louca. estranho. nem mesmo seu cheiro. nada. apenas um vento. o ar frio e puro daquela manhã em preto e branco.              

terça-feira, 28 de outubro de 2014

baratas

baratas

era velho. comprido. sujo.  as varizes estouradas. ganhava a vida desmontando ventiladores da marca Britânia. vidinha de merda.  mas não tão menos desgraçada quanto a minha e quanto a sua, lhes garanto.

não daremos nome a ele, me desculpem. um qualquer. mas um dia ele viu aparecer aquela barata no canto da casa. aproximou-se dela. parecia morta. emborcada. embora ele convivesse diariamente com as baratas, tinha horror á elas. asco. nojo. vermelhidão. de modo que não havia outra alternativa senão esmagá-la com os pés. mas ele investigou bem de perto aquela. lembrava-lhe um nenenzinho com suas patinhas entrecruzadas sobre o peito, numa atitude de clemência. as anteninhas se agitavam devagar.  nunca lhe ocorreu antes pena de matar uma barata. foi a primeira vez aquele sentimento estranho lhe invadindo. ficou ali pensando aquele homem comprido. um milhão de vezes. que diferença faria se ele a deixasse viver ou morrer. a escolha era sua. e não há momento mais desgraçado na vida de uma barata do que depender da escolha do outro, no momento de sua morte, eu suponho. deixou então que a vivesse, portanto. com uma cara terrível e enojada de mulher grávida ele pegou pelas anteninhas dela e a levou até o quintal. ela ainda se debatia. alegre ou infeliz por aquela decisão, sabe-se lá. pouco importa. atirou-a no esgoto. esfregou bem as mãos na hora de lavá-las e voltou ao seu velho ofício que era desmontar ventiladores da marca Britânia. era como ganhava a vida. há pessoas que vivem para parir. outras para sentir ciúmes. outras para escrever.  outras para futricar a vida alheia. e outras tantas para desmontar ventiladores da marca Britânia. ele pertencia a este último grupo. não tinha ninguém. mulher. filhos. cachorros. nem fotografias. nada. ainda não sei como chamá-lo. no bairro o chamam de cachorro doido. pronto, Cachorro Doido. Cachorro Doido notou que havia mais baratas espalhadas pela casa. mas do que o normal. elas foram surgindo aos borbotões. um montão delas. diria milhares. baratinhas e baratões.  na China, comem-se baratas. são bem cozidas antes de fritá-las.  mas Cachorro Doido não sabe disso. nunca saberá. e isto também não terá importância nenhuma para ele. não irá redimí-lo. tampouco salvá-lo. avancemos é que é. o fato é que as baratas invadiam a sua casa que era o seu único bem e que não lhe pertencia. nada nos pertence. nenhum bem. a vida de punhos fechados o ensinou que nada pertence a ninguém. somente o egoísmo que destrói e nos torna secos de alma. e aquelas baratas voando sobre o único cômodo da casa de Cachorro Doido, reparem!  não tinha não, como detetizá-las. as grandonas entravam pela janela. já as graúdas, pelas frestas do assoalho podre. cercavam os pés do Cachorro Doido. subiam por suas pernas. ganhavam as virilhas dele. colonizavam-lhe as axilas e o cu. vinham aos milhares. danadinhas que eram. havia também umas baratas bem estranhas cujas asas eram de uma transparência líquida e viscosa. essas exalavam um cheiro terrível que não saberia descrever aos senhores em suas mesas de almoçar. era um cheiro desagradável, por certo, diferente das baratas comuns. um cheiro que não sei mesmo descrever. mas que talvez eu consiga. um cheiro de solidão, medo, esquecimento e morte. não, não, não, não, não, nada se iguala ao cheiro de uma barata. ah, meu Deus, porque tanto desespero e sofrimento e ódio e inveja e solidão e desamor que guardamos dentro de nossos corações naufragantes. logo aquela casa se transformou num enxame de baratas. voavam em torno dele. zumbinizavam. um som oco e perturbador. as cascudas que deslizam em seu corpo, causavam-lhe estranhos arrepios na pele. em Beijing, servem-se baratas com ovos de mosca. ele olhou horrorizado o montoeiro de baratas formando uma nuvem espessa no interior da casa. nuvens de baratas. ele nem podia mais se mover direito. nada mais enxergava. e havia aqueles ventiladores para desmontar. todo um resto de vida. o certo era ficar ali parado, até que elas fossem embora. mas elas nunca iriam. as baratas vieram pra ficar. tomar-lhe o corpo. o espírito. a casa.