domingo, 4 de agosto de 2013

A ENTREVISTA

A ENTREVISTA
             (em memória de Anne Rocha)

  


Eu havia vendido alguns dos meus livretos naquela noite e parei no Bar do Lusitano para tomar umas cervejas porque ninguém é de ferro. Foi lá que conheci Anne Rocha, uma cantora de bolero da noite. Ela bebia sozinha no balcão bem ao meu lado. Olhava curiosa para mim e para a pilha de livros dispostos no balcão de vidro. Curiosa, quis saber seu eu é que tinha escrito aqueles livros e eu respondi que sim, que eu era escritor. Pediu gentilmente para olhar e eu a deixei folheando um deles enquanto fui ao banheiro. Quando voltei, ela me recebeu com um sorriso doce de bêbada e perguntou:
“Quanto é que custa um?” Disse-lhe que era R$10,00, então ela disse: “Não posso levar hoje porque estou dura, mas você pode divulgar esse seu livro na Rádio Porto Fluvial. Fala com o Saraiva, amigo meu que é locutor, diz pra ele que você é escritor e que é amigo da Anne Rocha.” Então eu disse:
“Poxa, que legal! É tudo de que mais preciso, ainda mais numa rádio. Quando posso ir?”
“Amanhã, as dez! Eu vou estar lá.”
“Então eu vou.” E ficamos conversando um pouco mais, até ela anunciar que já ia embora porque estava ficando pesada demais, então eu resolvi ofertar-lhe um livro de graça e prometi que pela manhã, as dez, eu estaria lá na tal Rádio. Aí ela se foi cambaleante e sensual como um bolero doce e eu fiquei lá, naquele balcão de vidro seboso.
É claro que não pude ir pela manhã porque bebi demais e acordei com uma puta ressaca, de modo que arrisquei ir á tarde. Aí o telefone tocou. Atendi. Era Jordana:
“Mário, preciso te mostrar umas coisas novas que escrevi.”
 “As cinco, no Bar Castelinho, ok?”
“Combinado.” E desligou.
As três em ponto, eu já estava lá atravessando saltitante a rampa do Porto Hidroviário atrás da tal rádio. A tarde declinava em calor, tédio e ressaca. Eu ainda ouvia vozes dos bares e tilintares dos copos chacoalhando dentro da minha cabeça. Alguém me informou que o estúdio ficava na parte superior e eu subi as escadas que me levariam finalmente ao estúdio. Como era uma sexta feira, o movimento era bastante intenso na Praça de Alimentação do Porto. “Se essa gente toda me ouvir vai ser muito legal.” Pensei alegremente enquanto passeava todo orgulhoso os meus olhos ao redor da praça. Chegando ao estúdio, dei logo de cara com o Saraiva, o locutor. Um cara com uma cara de Amado Batista: um rosto redondo e chato. Ele me lançou um meio sorriso amigável e pediu para que eu entrasse e sentasse enquanto anunciava a chegada de um barco que vinha de um interior desses qualquer. Quando pôde me dar um pouco de atenção, eu disse:
“Sou um amigo da cantora Anne Rocha. Ela canta na noite e divinamente bem, diga-se de passagem. (Eu na verdade menti. Nunca a vi cantar até ali, mas clichezamente falando, nessa vida é preciso saber rolar os dados). Ela falou da rádio e do espaço que eu poderia ter para eu divulgar o meu livro. Sou um escritor.” Mostrei o livro pra ele. Ele pegou o livro, olhou a capa, virou as páginas e deteve-se numa das linhas, foi aí que percebi que seu semblante foi ficando pesado demais á medida que ele aprofundava-se na leitura. Vi logo que o livro pareceu-lhe não agradar muito, dado a sua grave estética facial que se avolumava ganhando uma tonalidade vermelha. Depois de um tempo, ele disse:
“Mas isso aqui, meu camarada, é um livro pornográfico!” Aquilo me pegou de surpresa. Me ajeitei na cadeira e equilibrando melhor o riso, perguntei:
“Livro pornográfico? Como assim, seu Saraiva?”
“Meu amigo, você fala aqui de vagina, pênis, ânus e sei lá mais o quê e vem me dizer que não é pornográfico? Eu não vou divulgar isso aqui na minha rádio, não, cidadão.” Fiquei pensando no que dizer.
“Mas Saraiva, são apenas símbolos, metáforas. Trata-se de um recurso estilístico muito usado pelos realistas mágicos.” Tentei inutilmente convencê-lo.
“Mas olha isso aqui: (…) o pênis apontava em direção das estrelas, pois que gostava tanto da física quanto das palavras...” E olhando sério para mim, disse: “O cara segurando um pênis, cidadão!” Aquilo, é claro, começava a ficar estranhamente engraçado.
 “Não há ninguém segurando um pênis, Saraiva, (já estava ficando intimo do cara) o pênis tem articulação própria, assim como a vagina e também o ânus. Eles são membros desprendidos do corpo, e, portanto, tem vida própria. Na verdade, estão em busca de uma identidade, de uma afirmação, pois que não dependem mais do conjunto humano. É disso que eu trato no livro: do desmembramento no sentido antropomórfico da vida.”
“Meu amigo, isso aqui é uma rádio de respeito, lá embaixo, veja bem, tem gente de família, crianças, senhoras e eles certamente não vão gostar nada do que vão ouvir. Isso é literatura pornográfica!”
“Não, não é não, Saraiva, está sendo taxativo. Isso é literatura universal.”
“Se ainda trata-se das coisas da terra como os outros artistas que por aqui estiveram, mas convenhamos, falar de vaginas e outros orifícios, isso aqui não rola na minha rádio, não!”
“Mas Saraiva, já tem gente demais escrevendo sobre as coisas da terra. Eu escrevo sobre outras coisas.”
“Veja, meu rapaz, foi uma luta pra não tocar mais estes forrós de baixo calão e moralizar esta rádio, e aí vem você com esse seu livro.”
 Tudo parecia se encerrar ali, quando de repente entrou um cara alto e bem vestido e interrompeu a conversa. Trazia consigo um cd da Marisa Monte e pediu para que o Saraiva tocasse. Ele ouviu um pouco da conversa e com polidez quis saber do que se tratava, tendo em vista a irritação estampada na cara do sósia do Amado Batista.
“Este rapaz aqui quer divulgar um livro que ele escreveu, mas não tem condição, doutor.” DOUTOR? Olhei de relance pro cara e notei que ele usava um crachá da polícia Federal. Agora ferrou de vez. Certamente ele ia pensar o mesmo. O mundo estava perdido. A minha literatura estava perdida. Pensei exageradamente em tudo isso. Parecia que eu estava vivendo os anos de chumbo outra vez. Um lance meio surreal mesmo.
“Posso olhar?” Perguntou o agente.
“Sim, claro.”
 “O conteúdo é pornográfico.” Advertiu novamente, o Saraiva.
“Do que se trata o teu livro mesmo?”
“Bom, -- aí me posicionei como um pugilista amador pronto para seu segundo round e disse, -  é sobre um órgão sexual feminino que surge na testa de um cidadão aspirante a escritor, sendo que esse órgão fala, tem vontade própria, personalidade, e acaba transformando a vida pacata desse cidadão num completo absurdo, mas é claro que a novela não se trata apenas disso, mas também das relações humanas, da busca pela afirmação, do amor, de um cotidiano brutal a que todos nós incondicionalmente estamos inseridos.”
“E o que há de errado nisso, Saraiva? Eu também tenho uma vagina na testa, você não?” Respirei com alívio me recostando na cadeira. Havia ganho um aliado. “Deixa que o leitor faça a sua própria interpretação. Nelson Rodrigues – e aí ele se estendeu um pouco mais – foi um escritor muito censurado em sua época porque achavam que o que ele escrevia eram textos pornográficos, no entanto, o que ele falava era tão somente da hipocrisia de uma sociedade. E ele está aí. Depois de morto, é o cara mais lido na atualidade, e eu particularmente adoro ler Nelson Rodrigues.” E virando-se para mim, perguntou:
“Você já leu o Anjo Pornográfico?”
“A biografia? Sim, já li.” (E eu de fato lera. Também gosto de Nelson Rodrigues.) “Viu, Saraiva? Vê-se logo que o rapaz aqui tem leitura. Deixa o cara vender o seu peixe. Quanto custa o teu livro, camarada?”
“Dez, doutor.” Sacou sua carteira com a insígnia da policia federal e retirou lá de dentro a quantia certa.
“Assina aí: Tenente Álvaro.” Autografei o livro com uma satisfação e com uma alegria que não cabia dentro de mim. Fiquei imaginando a reação Indignada daquele locutor com cara de Amado Batista.
“Prontinho!” Entreguei o exemplar a ele.
“Vou ler ainda hoje. E não esquenta não, ele vai divulgar o teu livro, não é Saraiva?”
 E aquele policial bom e sensato despediu-se dando uns tapinhas nas minhas costas. Saraiva virou-se para mim com uma cara de poucos amigos e disse:
“Escuta, Mário, eu vou divulgar o teu livro sem mencionar esses detalhes profanos aqui escritos, embora eu confesse a você que não sou um apreciador deste tipo de literatura.” E pegou o microfone e divulgou o livro. Foi estranho e engraçado ouvir o meu nome e o nome do livro sendo anunciado no alto falante daquela rádio que tinha alcance nos arredores do porto e ao longo da catedral da Igreja Matriz, chegando até as barraquinhas de feiras ali próximas. Não rolou entrevista alguma, é claro, tampouco apareceu alguém no estúdio para ver o livro ou conhecer o seu autor. Mas que importância tem isso? Pensei. Deixei o lugar com a certeza de mais uma vitória e subi feliz e confiante como um gigante pequeno a Avenida Eduardo Ribeiro em direção ao Bar Castelinho para comemorar com a poetinha Jordana que a esta altura, certamente já me aguardava com seu vestido longo e ofuscante da cor do sol...