segunda-feira, 28 de outubro de 2013

O ANÃO DO AÇOUGUE - FINAL

XNÃO SE MORRE NUNCA. A VIDA É UM DEVIR.

Acordei em uma cama de hospital. As paredes brancas ao meu redor. Um cheiro de soro. Doíam-me todos os ossos.  Dei com Ecumênicus sentado em uma cadeira de frente para mim, lendo o Capital, de Marx. Parou de ler um instante, fechou o livro e sorriu dizendo:
“Que bom que voltou. Podemos agora rediscutir a tomada do estado.” Ecumênicus não havia desistido daquela ideia idiota de tomar o estado.
“O que houve, porra!” Perguntei com uma voz que não era minha.
“Ficaste em coma alcoólico durante três semanas. Diarréia e vômitos. Achei que tua ia se dissolver.”
“Caralho! Quero sair daqui!”
“Tá ainda muito fraco. Vais ficar mais esta semana, o médico disse.”
E fiquei ali com Ecumênicus me fazendo companhia. Ele vinha todas as tardes ler para mim O Capital, de Marx. Falou da Mais-Valia. Da exploração do homem pelo homem. E veio-me com uma teoria maluca que o mundo está dividido em quatro tipos de horas: a hora pra dormir, a hora pra comer, a hora pra trabalhar e a hora pra se masturbar. Distraia-me com Ecumênicus que nem via o tempo correr. Recebi alta e fui morar uns tempos com ele numa kitinete, no Bairro da Glória. Dei um tempo nas minhas bebedeiras e refleti mais sobre a vida que eu levava. Decidi mudar. Arranjei trabalho e resolvi freqüentar os alcoólicos anônimos. Mais fiquei entediado com aqueles depoimentos idiotas. Não deu muito certo, não. Procurei igrejas diversas. Tentei até o espiritismo. Mas não me encaixei em nenhuma doutrina daquelas. Não nasci pra ser escravo. Sentia-me um buraco enorme e negro. Era como se a minha alma tivesse me abandonado. Fugido em um tapete voador. Evitava passar em frente á açougues porque entrava em profunda depressão. Lembrava-me do anão. Precisava estar desesperadamente com alguém. O sorriso doce de Selminha escolhendo as cebolas em um supermercado, como nos velhos tempos, me vinha à cabeça em noites solitárias de domingo. Resolvi ligar para ela:
“Oi, Selmnha!” Aqui é o Mário Augusto.”
“Vai tomar no seu cu, Mário Augusto!” Gritou de lá. E desligou. Nunca mais a veria. Saí para as ruas. Sozinho. A cabeça atrapalhada. Mas sem um pingo de álcool no sangue. Afastei definitivamente a ideia de morte. De me sentir vazio. Pensei em voltar a escrever. Mas não sabia exatamente sobre o quê. Contei para Ecumênicus a experiência louca que tinha vivido, e ele, sem mesmo acreditar em uma única palavra minha, sugeriu que eu escrevesse sobre aquilo. Não seria fácil. Mesmo assim, sentei a bunda e escrevi. Freneticamente. Entre uma punheta e outra. Voltei a me masturbar como um louco. Ao cabo de um mês, tinha uma novela pronta. O anão do Açougue. A história mais louca que já tinha escrito em toda minha vida. Me senti vivo outra vez. Enviei para todas as editoras e esperei. Espero até hoje. Mas tudo bem. A vida é isso. Um corredor de longa espera.

***
Mais disposto e trabalhando como zelador em uma escola pública resolvi dar uma volta no centro. Ali pelas imediações da Mauá e Frei José. Tomei coragem e parei diante do prédio onde funcionava o Delirium. Havia se tornado uma Igreja da Assembléia de Deus. Uns poucos bares em torno dele ainda resistiam por ali. Sentei em um deles e tomei uma cerveja. Minha primeira depois de longos e tenebrosos meses. Fiquei ali plantado bebendo e relembrando de como fui do paraíso ao inferno. Foi quando vi Dagmar parada frente ao Nacondas, fumando elegantemente um cigarro. Gostosa naquele seu velho jeans apertadíssimo. Meu pau deu uma pinicada. Estava vivo de novo. Não se morre nunca. A vida é um devir.
Levantei-me animado, paguei a conta e fui ao seu encontro. Não me importaria se caísse novamente naquele papo de epilepsia. Dagmar tinha uma boca milagrosa. Ah, tinha! Era uma tarde de dezembro ensolarada. Ela sorriu de lá. Subimos as escadas do Nacondas outra vez...


domingo, 27 de outubro de 2013

O ANÃO DO AÇOUGUE



IX – MORRER É COMO ESTAR DENTRO DE UMA GARRAFA

Era fevereiro de 2002. Eu havia voltado á estaca zero. Distanciei-me do centro e agora andava de bar em bar pelos bairros poeirentos e esquecidos da periferia, com o anão dentro de uma garrafa. Tentava negociar com os caras. Convencê-los que havia um homenzinho ali dentro e que eles podiam ganhar muito dinheiro com aquilo. Riam de mim. Olhavam-me como um louco. Voltei a beber como um desgraçado. Xingava aqueles que não acreditavam em mim. “Homens sem fé!” Gritava bêbado. Cheguei a ser expulso de alguns bares aos pescoções. Amanhecia pelas ruas. Fodido. Jogado debaixo de marquises. Acordava sempre ao lado de uma garrafa de cachaça, e do outro, o recipiente contendo o anão que diminuía ridiculamente. Senti fome e frio. Não vi o carnaval passar. Me desesperava. Cheguei a ponto de procurar os circos e as casas de forrós. Apresentava-me aos empresários contando-lhes todo meu drama. Nem se preocupavam em olhar a garrafa. Iam logo dizendo: “Não nos interessa, seu Mário. O que faremos com um homenzinho preso dentro de uma garrafa?” Me sentia quando eu vendia os meus livretos pelos bares. Ninguém os comprava. O desespero foi tomando conta de mim. Tornei-me uma sombra amarga. Fui provando de um processo lento de degradação humana que não desejo ao meu pior inimigo. Definitivamente eu não estava preparado para tanto sofrimento. Ninguém está, não é mesmo? Eu me afogava em miséria total. Tornara-me um velho. Um traste! Um cara sem nenhum valor. Uma barata! Sonhava todas as noites com urubus devorando minha carne. Acordava suando e olhava para o homenzinho lá dentro ficando cada vez mais pequeno. Morrendo dentro de uma garrafa. Morrer é como estar dentro de uma garrafa. Entre um gole e outro de cachaça que compartilhava com os mendigos da Praça Independência, comecei então a compreender o valor da significância humana. Só depois que desaparecemos ou diminuímos de tamanho é que percebemos a nossa ínfima grandeza.

Numa manhã de quarta feira de cinzas, acordei e percebi que o anão havia se dissolvido. Tornara-se um líquido amarelado no fundo da garrafa. Literalmente um sêmen. Olhei o sol. Minha barriga doía. Veio-me a ideia de vender o sêmen do anão como um creme milagroso. Como fazia antes. Mas eu havia mesmo caído em descrédito total. Em desgraça. Não tinha mais força. Destruído, dirigi-me então à Ponte da Sete de Setembro e do seu alto, arremessei a garrafa no Igarapé podre que corria lá embaixo. Pronto! Tudo acabado. Havia me livrado definitivamente do anão. Agora eu podia me tornar  livre de meu egoísmo. Deixei a ponte e parei no primeiro boteco baleado que encontrei no caminho pra comemorar. Bebi tudo que me restava no bolso. Dancei, pulei, cantei marchinhas, xinguei o mundo. O carnaval mais triste da minha vida. Depois, apaguei. Ali mesmo. No chão fio de madeira, leproso.

terça-feira, 1 de outubro de 2013

O ANÃO DO AÇOUGUE - PARTE VIII

 A PROFECIA DE JESUS SE CUMPRE

Era óbvio que cedo ou mais tarde o anão nos pregaria uma peça. O fenômeno tinha a ver com a sua estrutura física e fisiológica. Da Cruz diminuía de tamanho a cada ejaculada. Percebi por causa das roupas que lhe pareciam cada vez mais folgadas no corpo. A gala mais rala. Os tiros cada vez mais curtos. O que fazer agora? Levei o caso ao conhecimento do seu Tapajós, que por sua vez não acreditou muito. Provei a ele que o anão estava mesmo diminuindo. Propus a reduzir de três para duas ejaculadas por dia. Ou então conceder umas férias urgente para o anão poder descansar. Mas não houve acordo. E o anão continuou com seu show. Diminuía de tamanho cada vez mais. O quimono agora o engolia por inteiro. Ajudava-o a sentar na cadeira. A subir e descer do tablado. As ejaculadas diminuíram de três para duas. Depois de duas para uma. O anão foi perdendo a força. A graça. Não dava mais conta das ejaculações. Era como uma lâmpada enfraquecendo. Chegou á altura do meu joelho. Virou motivo de chacota. Vaias. As pessoas foram deixando de freqüentar o Delirium. Aquilo lá foi esvaziando. As pessoas queriam ver o anão ejacular; beber e banharem-se do seu Ganges sagrado. Seu Tapajós chegou comigo e sussurrou em meu ouvido:

“O senhor vai dar o seu jeito, seu Mário. Estamos até aqui de dívidas pra pagar.” Mas o que eu poderia fazer leitor? Aquilo era algo irreversível.
O anão agora media menos de três palmos de altura. As meninas já tinham dado o fora. O barco afundava. Uma noite, sem ter muito o que fazer, guardei o anão no bolso de minha camisa e foi minha vez de cair fora dali de mansinho. A negrinha que nunca mais tinha visto no meio de toda aquela confusão, surgiu no topo da escada. Achei que fosse me dedurar. Mas, sorrindo imbecilmente, queria apenas me mostrar os seus dentes novos, de ouro:

“Ah, vá à merda, negrinha!” E pulei fora dali pra nunca mais...