quinta-feira, 20 de novembro de 2014

MISTÉRIOS, PAIXÕES E MACUMBARIA

Perto dali. Quatro da tarde. O vento mudara seu curso. Soprava com mais força. Com mais vontade. Eu ouvia Summertime enquanto pressionava com avidez o meu copo de cerveja para que ele não se afastasse de mim. As folhas desprendiam-se das árvores e rodopiavam alegres no ar. Havia vento e muita poeira. Transeuntes caminhavam com dificuldades pela Getúlio Vargas. O vento os empurrava para trás. Impedia-os de avançar com suas vidinhas simples. Olhei uma garota. Tinha um belo corpo: quadris, pernocas e peitinhos perfeitos. Tive a impressão de conhecê-la. Ela caminhava contra o vento. E como em um filme antigo e em preto e branco, o seu guarda-chuva fora arrancado de suas mãos, deu quatro ou cinco piruetas no ar e voou para longe dela. Ela correu atrás, sorrindo. Acompanhava a cena ouvindo Summertime. O vento maroto parecia brincar com ela. Uma brincadeira maliciosa. Ele levantara a saia dela. Vi sua calcinha cavada aparecer. Não lembro da cor, mas isto não tem importância. A pecinha realçava-lhe perfeitamente as nádegas morenas e bem cheias. A forma. O recheio. É tudo de que me lembro com fuligens nos olhos. A garota levou a mão á boca. Dava risadas no vento. Senti uma ereção boa, ali, sentado, tomando minha cerveja e ouvindo Janis Joplin. Um cara comprido, logo atrás, deixou as sacolas de compras e foi ao seu socorro. Resgatou o guarda-chuva dela. Abraçaram-se dando risadas. Fui lembrando deles aos poucos. Era o casal da festa Rave. De uns meses atrás. O mesmo casal da urina e das fezes. Eles seguiram andando. Dobraram a esqüina da Getúlio e sumiram. O céu escureceu de verdade. Mesas e cadeiras voaram pra longe.  Começaram a cair pingos grossos de um céu furioso. Resolvi entrar. Me juntei aos outros caras que bebiam no balcão do Cinco. Pedi outra bebida. Vento e poeira e Summertime ainda tocando. O nome da garota era Érica. Havia lembrado. E por alguma razão achei que ainda tivesse o cartão dela na carteira. Dei uma boa olhada. Necas. O Cinco me serviu uma cerveja e veio com a de sempre:

“Grande Mário Augusto! Agora diz aí pro Delegado Marcolino, Mário Augusto, o que você acha do cara que dá o rabo.”

“Maravilhoso.” Respondi. O Cinco caiu na risada. Uns outros bebuns também. Estavam acostumados com a panacéia. O Delegado Marcolino não disse nada. Mantinha-se ereto e sério demais. Não que tivesse ficado chateado com o que ouvira. Mas porque aquele era o seu jeito de ser e de estar sempre ali, postado, naquele balcão. Usava um chapéu panamenho e sentava-se bem ao centro, como um ditame ou um rei.  Ao contrário dos outros, o Delegado Marcolino bebia um uísque do bom. Um júnior, do outro lado do balcão, mirou na minha direção:

“Então me responda, Mário Augusto, qual é o maior escritor vivo da atualidade?” Olhei pra ele antes de tomar uma golada da minha cerveja. Nunca tinha visto aquele júnior antes:

“Dostoievsky!” Respondi-lhe.

“Não, esse não vale. Quero um atual.”

“Este é atual.” Disse.

“Quero um vivo!”

“Não há.”

“Deixem de bobagens. Shakespeare é o melhor. O mais atual de todos.” Disse o Delegado Marcolino com sua voz de trovão. Não havia como sair dali. A chuva desabara de vez.

“Aí conhece, não é doutor?” Disse o Cinco puxando-lhe bem o saco. Era sua especialidade puxar sacos de juízes e de delegados.  

“Ninguém foi mais profundo na alma humana do que Shakespeare, meus filhos!” Confirmou o Delegado Marcolino. Tinha um timbre perfeito. A voz profética e altiva de um Nelson Gonçalves.

“Uhuuu...” Vibrou o júnior do outro lado. “O que me diz agora hein, Mário Augusto?”

“Não tenho muito saco pra Shakespeare.” É, eu na verdade não tinha mesmo não. Na faculdade tentaram me empurrar Shakespeare, mas eu fugia para o Bar do Cabeludo. Lá eu afogava minhas tragédias em copos de cerveja. Você passa a vida toda com as pessoas tentando lhe dizer como você deve agir, ler ou ouvir as músicas certas. Eu já estava ficando de saco cheio daquilo.

“Vocês precisam ler Shakespeare.” Disse o Delegado Marcolino segurando o seu chapéu para que ele não voasse com o vento. E depois, continuou: “Shakespeare é o melhor. Todos são capazes de dominar a dor, exceto quem a sente. Está lá em Hamlet. Em Romeu e Julieta. A escolha da vida e a certeza dos sofrimentos. Leiam Shakespeare, meus filhos. Brandiu o Delegado com o gogó inflado.

“Ouça o que o delegado diz, Mário Augusto.” Disse o júnior.

Aí começou um barulho de vozes. Ninguém mais se entendia. Elas se entrecortavam, misturando-se com o ruído da chuva brava. Um pé d´água. Como se não bastasse, o júnior veio sentar-se ao meu lado. Os júniors são uma espécie de meus demônios mirins. E eles se espalham. São como lepras  ou como alguma enfermidade desse século.

“Você Mário Augusto, se esgueira como um animal pantaneiro. Quando é que vai mostrar a sua cara?”

“Eu só quero terminar minha cerveja.”  

 Com o júnior me enchendo o saco, e o Delegado Marcolino com sua língua mais solta - tentando convencer á todos que Shakespeare era o melhor caminho - me vi na obrigação de abandonar o lugar. Dei as costas para a horda e escapei de mansinho entrando no meu carro que estava estacionado logo á frente. Dirigi de volta sob a chuva grossa. Os parabrisas dançavam. Iam e vinham fazendo um ruído patético. A estrada de volta é sempre mais escura e sinuosa. Eu sobrevivia a ela. Olhei pela janela do carro as ruas vazias. Os semáforos apagados. Nenhuma puta pelas esquinas. Uma vez em casa, coloquei um blues melancólico pra tocar, abri as janelas e sentei pra escrever. Não me veio nada á cabeça. Olhei a solidão do lago, mergulhado no escuro. Blues, frio, chuva e solidão. Corria um leve e agradável vento. Me senti só. E não é bom que um homem esteja só. Está lá nas escrituras sagradas. Procurei pelos meus entulhos, o cartão de Érica. Eu havia guardado em algum lugar. Fiquei ali procurando. Fui encontrá-lo dentro de um ensaio de Spinosa. Sentei á beira da cama e olhei o cartão com telefone e endereço. Imaginei Érica. O vento levantando sua saia. O seu sorriso. Sua genitália beiruda. Vermelha e beiruda. Minha língua deslizando ali. Mordiscando-lhe a pelezinha suave e macia, como tinha que ser. Ah, como eu precisava meter minha trolha ali. Quem sabe eu não teria uma chance com Érica. Iria dar um tempo com as putas. Necessitava de uma aventura nova. De um maldito afeto para seguir enganando a mim mesmo. Guardei o cartão na carteira. Fui ao banheiro lavar meu rosto. Lá estava eu outra vez de frente ao espelho. Olhava minha velhice corrosiva. Minha vida ao avesso. Olhos cerrados a remoer a solidão como ela deve ser necessariamente remoída. Olhar-se no espelho é sempre uma boa maneira de resumir-se. Segui me olhando. Este outro sem rumo e do avesso ancorado dentro de mim. Depois voltei para a sala, tomei o trago que restava do vinho na garrafa, e tentei voltar a escrever...    


sexta-feira, 14 de novembro de 2014

O VELÓRIO DO RAIMUNDO PERFUMADO - OU O PRIMEIRO BEIJO

I

Chovia no velório de Raimundo Perfumado. O velório mais triste e mais estranho de que me lembro. Foi aí então que ela me apareceu...

II

   A chuva espocava lamuriante no lajedo da capelinha da paróquia: o som oco, duro, perturbador e apaixonante da chuva. Eu segurava fortemente nas mãos de minha mãe que era pra não deixá-la chorar. Mas o seu semblante era duro e firme enquanto olhávamos para aquele esquife largado e sofrido no centro do salão. Lembro de seus óculos escuros; o lenço colorido e elegante formando um discreto xale em volta de seu pescoço materno e delicado. (Que Deus me conserve a lembrança desta imagem para sempre!) Aonde quer que ela fosse ou estivesse, havia sempre de espalhar o seu charme, sua coragem, seu aroma de amor e sua bondade humana. Aí, uma senhorinha se aproximou de nós. Chamava-se, Dona Betinha. Carregava seus quase oitenta e poucos anos nas costas encurvadas pelo tempo. Naquele momento de dor careada, eu lembro o que ela disse para minha mãe:

  “Você, Eunice, foi mãe e pai desse menino! Eu acompanhei a tua aflição, minha filha. Mas ele agora não sofre mais. Foi daqui pro colo de Deus! Já o irmão do Zé Arigó – este infeliz - já não posso dizer o mesmo, pois nem no inferno vai encontrar descanso...” Foi o que nos disse Dona Betinha com sua voz tremulada de reticências. E a palavra, Inferno, eu fiquei pensando bastante nela, olhando pra cruz de Jesus dependurada na parede. Não resisti e cochichei um pouco alto no ouvido de minha mãe, que amavelmente inclinou-se para ouvir minha pergunta:

  “Será que o inferno existe mesmo, mãe?”

  “Que besteira, Augusto!” Dona Betinha que ouviu minha pergunta alta demais tratou de explicar:

 “É claro que existe, meu filho. E lá só há sofrimento e dor. O inferno é o fim da linha para os danados.”
  Foi nesse instante de medo infantil que lancei a vista assombrada na direção da porta da capelinha e vi entrar a Dulcimar. Meus olhos e meu coração logo se encheram de júbilo e  encantamento. Dulce (como era conhecida na minha rua) era cinco anos mais velha que eu, e morava em uma estância pobrezinha atrás de nossa casa. Tinha cabelos crespos de sarará; os olhos bem negros, as coxas grossas e os seios volumosos que mais pareciam duas maçãs do amor. Neste dia de dor velórica, ela estava linda e simples em seu vestidinho de dançar quadrilha. Ela se aproximou do esquife conduzindo a vozinha dela pelas mãos. Meu coração começava a batucar um pouquinho mais alegre sempre quando eu via a Dulce, e ela me sorria. O seu sorriso tinha um encanto sonoro e chamativo de uma flauta doce. Nesse dia ela me sorriu do outro lado do caixão. Dulce me provocava a pecar. Aqueles seus peitões de maçã do amor; o seu corpo de curvas todo ajustadinho no vestidinho colado e florido. O cheiro discreto que emanava de sua pele. Dulce era o meu medo. Meu pecado. Minha libertação. Enfim, meus arroubos apaixonantes de menino...  

  III

 “Teu filho tá ficando rapaz, hein, Eunice? Lembro dele zangado e tristinho querendo comer as hóstias. Tu ainda te lembra, meu filho?”
Voltei a mim. Devia ter os meus oito ou nove anos de idade, só que tinha vergonha em lembrar. Eu era uma espécie de papa-hóstia mirim. Chegava sempre cedo na Igreja Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, na companhia de minha mãe, só pra comer das bolachinhas brancas que curiosamente tinham gosto de papel e nada. Aquilo havia se tornado um ritual sagrado de todos os domingos. E quem corajosamente pegava as hóstias para mim - quando elas ainda se achavam na sacristia - guardadas dentro de um recipiente dourado, antes do coroinha levá-las para o altar - era a Dona Betinha:

  “E aí de mim se não conseguisse as bolachinhas, ele cruzava os braços emburrado, ameaçando fazer um escarcéu na Igreja, não era Augusto?”

 “Era mesmo, meu filho?” Perguntou com denguice, minha mãe, afastando para trás as mechas de meus cabelos morenos, junto com as picadas da dor. Encolhia-me todo com vergonha. Cristo já me olhava desconfiado da cruz.
  Vi quando Dulce afastou-se um pouco de sua vó e caminhou com charme ondulante até a quadra que ficava anexa á Igreja. Não esqueço mais a imagem de seus dedos finos e longos deslizando chamativos pelas paredes azulejadas da capela, e também daquele seu olhar e sorriso penetrantes que me convidavam a segui-la. Enfeitiçado que estava, evidente que fui. Pus-me da porta da sacristia observando em silencio os movimentos graciosos dela que iam e vinham sobre um balanço abandonado, nos fundos da quadra. A chuva agora caía leve como sementinhas vindas do céu. Era tarde demais para esquivar-me. Seus olhos entraram nos meus, como ondas elétricas e copulativas. Chamou-me de lá com o dedo fazendo uma curva:

 “Vem cá, vem, Augusto!” Me aproximei dela sobre o balanço. Suas coxas juntinhas e grossas eram bem mais lindas de perto. Pediu para que eu a empurrasse. Posicionei-me por trás dela:

 “Não por aí, seu bobo, pela frente mesmo!” Atrapalhado, não sabia onde botar minhas mãos. Desci-as levemente sobre as suas coxas grossas e nuas.  Agarrei-as firme e a impulsionei para o alto, largando-a no ar.  

 “Com mais força, Augusto!” Pedia-me. Obedeci. O seu corpo foi mais longe. Mal sentia as pinicadas da chuva. “Mais força, Augusto! Cuida!” Implorava-me, sorrindo. Divertia-se. Minhas mãos tremidas sobre sua cintura.  A calcinha à amostra. Branca. Discreta. Aparecendo lá no fundo. O balanço a ir e a vir. Cada vez mais para o alto. A chuva molhando meu sorriso. O dela também. Não era mais uma tarde triste e velórica. Mais uma tarde alegre, doce e sedutora. Uma tarde de sensações Elétricas por todo meu corpo.

 “Chega, vai! Pára! Pára, Augusto!” Fui diminuindo a velocidade. Ela pousou á minha frente como um pássaro lindo. Seus olhos negros. O corpo provocador. Seu cheiro natural. Ficamos assim, nos olhando de perto. Aí ela disse:

 “Tá triste, não é Augusto?”

 “Um pouco! Mais pela minha mãe.”

 “Fica assim, não. Fecha os olhos!”

 “Han?”

 “Fecha os olhos!”

 “Mas pra quê?”

 ”Fecha logo!”

  Fechei. Fiquei um tempo sentindo a chuva doce deslizando em meu rosto. Depois, o toque suave dos lábios de Dulce nos meus. Sua língua morna penetrando devagar na minha boca, vasculhando todo o seu interior. Foi como uma eternidade. Não sei definir a sensação sentida. Meu coração batendo acelerado. O gosto daquele beijo. O primeiro de minha vida. Doce. Suave. Inesquecível. Como o piano do Richard Clayderman que eu ouvia. Poderia ficar aqui remoendo mais lembranças, reiventando coisas, mas os lábios de Dulce desgrudaram-se dos meus, e foram assim, se afastando para longe de mim como uma imagem pura e santa que se recolhe ruborizada para trás do espelho intransponível da alma.

  Não falamos nada um para o outro. Não havia o que dizer. Rimos apenas. Ela, mais que eu.  Depois – como uma mãe zelosa e preocupada - removeu o beijo que ficou pintado em minha boca. Pegou em minha mão e caminhamos com nossos dedos entrelaçados de volta à capelinha...     

quarta-feira, 12 de novembro de 2014

O RETORNO DA MOSCA DE OLHOS VERMELHOS


    A MOSCA DE OLHOS VERMELHOS voltou a freqüentar minha casa. Como não posso alojá-lo dentro, têm-se virado com uma rede na varanda, ou mesmo dormido no banheiro de fora sobre um colchonete velho. Tenho lá minhas razões para não acolhê-lo dentro; deixá-lo dormir no sofá. E ademais, minha esposa não aprovaria, pois ela, assim como eu, tem lá suas razões.
   A Mosca nos assegurou que é por pouco tempo, até conseguir alugar um quarto. Voltou a trabalhar como Chapeiro no Bar do Cinco Estrela. Reclama que o dono do estabelecimento lhe paga muito mal pelo trabalho que faz. Além de chapeiro, ele encarrega-se de fazer outros serviços como limpeza e arrumação do Bar. E ainda por cima – ele me diz – tem que aturar os fregueses insuportáveis e mal humorados. A Mosca sempre tem uma história interessante para me contar. Outro dia, enquanto tomávamos café, contou-me sobre um sujeito que lhe pediu que fizesse um sanduíche urgente, no que ele explicou que o pedido teria que ser feito primeiramente ao patrão, e que este o ordenaria a fazer. As coisas funcionavam exatamente assim. Foi bem claro. Um outro sujeito que neste dia estava ao lado deste cliente – e que porventura – já havia certamente bebido todas – gritou-lhe do balcão: “Vá logo fazer a merda deste sanduíche, rapaz!” A Mosca olhou para o sujeito sem muito acreditar naquela descompostura – e olha que o Mosca, apesar de sua finura e estatura baixa, não é de levar desaforo para casa, não, e que portanto, reagiu: “Como é que é? Quem é você para falar desse jeito comigo, seu merda! Vá cuidar da sua vida! Aqui eu só recebo ordens de uma pessoa que é o proprietário desta casa, não de um merda como você que mal conheço.” O sujeito então levantou-se com o propósito de desferir-lhes alguns socos, mas os bebuns o  cercaram e o impediram. A Mosca foi até a cozinha e pegou uma faca de cortar carne e disse-lhe mais algumas coisas: “Pois então venha! Venha agora, seu merda!” A Mosca contou-me que o sujeito valente olhou para a ponta do seu facão que brilhava, e por conta disso, resolveu mudar
de idéia. E o bar voltou a sua normalidade.
No entanto, a Mosca decidiu que não ficaria mais ali, livrando-se do seu avental e da sua toca de cozinheiro. Mas o Cinco - quase chorando – o impediu de ir embora.   E ainda prometeu que aumentaria seu salário de R$ 35, para R$ 40,00.  Acabou convencendo-lhe de ficar. “Cara, não sei por quanto tempo vou aguentar aquilo ali, não, Mário. Ficarei só mais este mês. Tratarei de economizar uma grana e me mandar desta cidade, deste país.”
Terminamos o nosso café. Ele levantou-se e foi olhar discretamente na minha estante de livros. Senti temeroso quando ele folheou alguns deles. Sempre quando ele se aproxima da minha estante de livros, alguns deles desaparecem. Eu tinha que ficar sempre de olho em seus movimentos pela casa. A Mosca é como um ilusionista barato que me engana os olhos e às vezes faz chorar meu coração. Mas neste dia ele devolveu o livro à estante e me disse: “Me deixa ficar só alguns dias morando aí no teu banheiro até arranjar um lugar decente pra ficar. Até eu me equilibrar de novo. Eu sei que essa vida somos nós que escolhemos. Um dia, quem sabe, não acerto viver decentemente.”

Disse-lhe afinal que podia ficar morando lá no banheiro até ele se ajeitar. Agradeceu-me com um leve abraço. Ofereceu-me um peguinha do seu barato. Fumamos na sala, em silêncio. Chegamos até rir de nada olhando a fumaça que subia devagar... Depois, ajudou-me a lavar as xícaras e os pratos de ontem, e recolheu-se ao banheiro.    

terça-feira, 11 de novembro de 2014

O HÓSPEDE DO BANHEIRO

Eu andava ás voltas com um novo conto, quando senti a presença de uma sombra magra e apequenada posicionar-se atrás de mim. Virei-me subitamente e dei com a Mosca que segurava muito à vontade, uma xícara de café e um pedaço de pão:

“Pô, cara, que susto!”

“Ah, me desculpa, te assustei, não foi?”

“Faça isso não, cara.”  

“É que o banheiro tava muito frio e eu vim tomar um pouco de Nescau quente.” 

  Disse aquilo sentando-se em seguida à beira da cama. Parecia mesmo muito à vontade pela casa. E aquilo não soava bem. Como se não bastasse, perguntou:

“O que está escrevendo agora?” Voltei-me furioso em sua direção, e disse:

“Não interessa. Olha, deixa eu te explicar uma coisa. Não me leva a mal, mas é que eu não gosto que fique entrando e saindo da casa sem o meu consentimento.”

“Eu sei, eu sei, é que eu precisava tomar alguma coisa quente. Faz um frio desgraçado no chão daquele teu banheiro. O colchonete não resolve, e eu ainda fui perder a porra da minha rede.”

“Não, você não perdeu, você penhorou na boca a porra da rede, você me disse.”

“Tá, eu penhorei, tudo bem...”

“Então, e eu não tenho nenhuma para emprestar-lhe agora...”

“Não estou pedindo nada emprestado. Estou sabendo me virar muito bem naquele banheiro frio. Tudo é uma questão de adaptar o corpo a qualquer circunstância da vida. Não sei se já lhe contei esta, mas certa vez, quando peguei a estrada para Venezuela, dormi no acostamento da Basiléia, debaixo de uma carroceria de caminhão abandonada. Havia só um cara lá dormindo debaixo de um cobertor sujo e mal cheiroso que mal cabia-lhe o corpo. E fazia um frio desgraçado, putz!  Me sentei perto dele e perguntei se ele podia  dividir o agasalho comigo. Ele grunhiu de lá qualquer coisa, aí então eu mostrei-lhe uma garrafa de cachaça pela metade e algumas castanholas que eu havia colhido pelo caminho. Ele permitiu que eu me aproximasse dele e fizemos um leve banquete. Naquela noite,  revezamos o cobertor e eu tive um sonho mais ou menos tranqüilo, então eu lhe digo que não estou me queixando de nada, só preciso aquecer um pouco as células do meu corpo, não me leve a mal, sim?

“Tá tudo bem, só me faz esse favor, de não ficar entrando e saindo sem minha permissão...”

“Pode deixar. Mas eu tenho uma coisa pra te contar, mas espero você acabar aí, não quero atrapalhar. Lhe espero na sala.”

Ele então deixou o quarto em passos leves de ladrão e foi para a sala. Fiquei ainda ali pelejando com conto, mas logo desisti dele e desliguei o computador.
Na sala, o flagrei sereno enrolando seu baseadinho:

“Mas já?”

“É o costume. O sol brilha melhor pela manhã depois do primeiro baseado.”

“Só que eu estou com uma sobrinha agora passando uns dias aqui em casa, e acho que não fica legal.”

“E eu não sei. E ela é uma gracinha, radiante e inteligente, com todo respeito. Mas enrolo esse aqui e vou fumá-lo no banheiro, fica tranqüilo.”

“E o que você ia me falar mesmo?”

“Ah, sim, cara, larguei aquela joça lá...”

“O trabalho no Cinco Estrela?”

“Aquilo lá é um inferno, cara, e você é explorado até á medula.”

“Tá, mais como é que tu vai se virar agora?”

“Como sempre me virei. Voltarei com os artesanatos e pegarei a estrada outra vez. Vou passar uns meses na Venezuela. Tenho um corpo e ele não está preso à servidão nenhuma.” Disse ele celando definitivamente o papelote com a língua. Fazia aquilo com uma perícia impecável.

“E o que aconteceu dessa vez?”

“Deixa eu lhe contar. Um tal de Gerente voltou a trabalhar como garçon. O Cinco alugou um dos quartos pra ele e pra esposa, e ele agora trabalha de graça pra pagar o aluguel. Só que o sujeito, esse tal de Gerente, além de grosseirão, é bastante enrolado, e ainda por cima espanca a  própria esposa e ninguém consegue dormir com os gritos dela. Uma noite dessas, uma vizinha ao lado, após ouvir o quebra-quebra e gritaria, acudiu em defesa da mulher que apanhava, e o Gerente, como se não bastasse os impropérios, acertou-lhe um soco no peito da intrometida que a lançara ao chão. Ela então esperou o marido chegar, e aos prantos, contou-lhe todo o ocorrido. O cara, que me parece um cabo da polícia, armou-se do seu revólver e foi até o Bar do Cinco tomar as satisfações devidas. O azar é que o Gerente encontrava-se na cozinha conversando comigo quando o brutamontes do cabo entrou  e apontou-lhe a arma para a cabeça dele.  Fez-lhe ajoelhar aos seus pés. O cara urinou-se todo porque aquilo lá ia disparar de verdade. Eu fiquei sem voz, encolhido no canto imaginando os miolos do Gerente espalhados pela cozinha. Ouvi o gatilho sendo acionado, e o som que fez era seco, como dentes amolados que se trincam de pavor. Então tomei coragem e disse: “Vai com calma aí cara, foi o que eu disse. “Fica na tua, poeta! Esse sujeito tem que aprender a respeitar a mulher dos outros.” E bumba! Só que – para meu alívio - não foi um tiro, mas um tabefe certeiro que o valentão dera no Gerente, seguidos de pontapés e uma infinidade de murros. O pobre do Gerente apanhou muito e eu não pude fazer nada. Até achei bom ele apanhar daquele jeito pra aprender, por outro lado, a cozinha ficou um estrago. Mais tarde, após toda aquela confusão, O Cinco, eu e mais um morador de rua que sempre estava por ali no bar mendigando umas doses de conhaque, olhávamos atordoados para o corpo desacordado do Gerente:

“Tu e tu, pega esse filha da puta e arrasta lá pra trás.” Ordenou o Cinco. “E eu quero essa minha cozinha limpa, poeta!”

  Eu e o sujeito arrastamos o corpo pros fundos. O cara voltava devagar. Estava mesmo bastante machucado:

 “Ei poeta, tem como descolar uma dose daquelas de conhaque pra nós?” Perguntou o morador de rua. Olhei pra ele e disse:

  “Até uma garrafa, se você quiser.”

  Depois, voltei para a cozinha, limpei tudinho como ele havia mandado. Até furei meus pés em alguns cacos de vidro. Mas deixei a cozinha bem arrumadinha e cheirosa outra vez. Já se aproximava das duas da manhã. Eu vi no relógio da parede. Já havia uns poucos clientes. Os mais enjoados haviam deixado o Bar. Restando só aqueles que ainda acreditavam em algum latido de esperança.  
  Uma boa hora, portanto, pra eu negociar com o Cinco.  Eu ainda usava a touca e cheirava a fritura de tomates e cebolas. Então eu disse pro Cinco:

“Cara, preciso que você aumente minha diária.”

“Porra, você tá aqui há menos de um mês e já quer aumento? Rola não, poeta. Volta pro teu posto é que é, caralho.”

“Tudo bem então.” Disse-lhe, abrindo um sorriso camarada.

“Olha, escuta, prepara um tira gosto daqueles pra mim.”

“Sim senhor.”
 Voltei pra cozinha. Caprichei no tira gosto. O seu cheiro espalhou-se pelo bar inteiro. Tenho certeza que seu aroma alcançou o outro lado da rua. Sei bem como agradar um bom paladar. Até do mais frio e miserável dos homens. Olhei para o alimento no prato, puxei o catarro de dentro do peito e cuspi sobre a comida. Fui servi-lo. Aproveitei o momento  em que ele ficou distraído deliciando-se com o prato, e surrupie-lhe uma garrafa de alcatrão sobre a prateleira. Levei para a cozinha e a escondi na bolsa. Removi imediatamente meu avental e minha touca, lavei bem as mãos e preparei-me para dar o fora. Ao me ver passar apressado, ele levantou a vista do prato e gritou de boca cheia, desesperado:

“Ei poeta! Onde tu vai?”

“Sacando fora!”

“Não pode fazer isso não, porra!”

“Não posso é um caralho. Eu sou livre!”

“Não vou lhe pagar diária porra nenhuma.”

“Faz o que você quiser com a grana. Pode até enfiar naquele lugar. Fui!” Ele ficou de lá gritando com as mãos no quadril. Me xingando pra valer. Alguns bebuns riam da cena. Mas eu já ia longe. Atravessando a noite alta e fria. Encontrei  o  sujeito  que me ajudou com o corpo do Gerente. Ele dormia sobre um banco de concreto de uma parada de ônibus.  Cutuquei-lhe o corpo molabento e mostrei-lhe a garrafa de conhaque inteiraça. Ele abriu um largo sorriso:


“Porra, poeta, tu é de fé mesmo.” Trazia também comigo uns queijos e mortadelas que havia me apropriado da cozinha do Cinco. Atravessamos a rua, e nos alojamos debaixo de uma marquise. Detonamos os dois, aquela garrafa inteira de conhaque. Sabe, Mário, as pessoas acham mesmo que me conhecem, mas o que elas não sabem é que sou um lutador de esgrima, e que a cada manhã, me nasce um sol diferente e eu então sigo caminhando, indiferente as dores, e talvez isso me baste, me salve, me redima... O homem é o seu próprio destino, e portanto eu vou...”

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

carniceiros

ainda  resisto. vejo agora tudo de cima deste muro branco. um corpo que bóia.  mas é só um corpo. as águas podres arrastam-no para à margem. curioso. um a um os urubus vão pousando. cercando a carniça. começam a bicá-la. bicos longos e negros.  são muitos agora. fazem furos precisos. se eu aqui pudesse sonorizar os ruídos destes pássaros. mas é que um outro chega. reparem. é maior e mais negro.  asas bem abertas. ameaça os demais. quer sozinho banquetear-se do cadáver. o egoísmo não é uma qualidade apenas do homem. está no âmago dos pássaros e das flores. gaivotas passam ao largo. não foram convidadas. voraz, este pássaro enorme e negro  retira vísceras que ficam grudadas em seu bico. também sente fome. uma fome voraz.  imagens e sentimentos que não me saem da cabeça. os outros apenas olham. contentam-se com as carcaças de peixes. mas não é a mesma coisa. não como este corpo inchado. suculento. que se afogou. você daí entende este quadro vazio da vida? um menor se aproxima. na distração, arranca-lhe o olho do cadáver. fica um buraco. afasta-se. vai comê-lo ao longe. seis desta manhã. o sol nasce quadrado. um bêbado olha a cena. cabelos pintados de acaju. sua solidão é como esta água barrenta, amarela e podre. toma logo um trago. olha o céu. tudo é um nada sem respostas.  nuvens densas que se fecham para a vida ali dentro dele. melhor é não ter nascido. ele pensa um instante. os urubus não desistem. uma centena deles agora.  cercam  o boião outra vez. o outro se vê acuado. cedi-lhe o egoísmo que bate em retirada pro céu. os urubus fazem a festa. destroçam a carniça até não restar nada.           

sábado, 8 de novembro de 2014

A SINA DO OLHO


                                                                                        ***

      Eu não sei o que acontece com este olho esquerdo.  Parece ser  uma sina. É sempre ele que recebe os golpes duros da vida; da mesquinhez e do ódio humano.  
     P.J estava possuído naquela noite. Havia bebido e cheirado aos montões. E agora me acusava de estar tendo um caso amoroso com Berenice. Disse ainda que ele não era corno coísíssima nenhuma - e que eu iria pagar muito caro por estar fazendo aquilo com ele. Tudo de que me lembro é do rosto da Madonna transfigurando-se numa coisa hedionda logo que recebi aquela garrafada certeira na cara. Levantei-me terrivelmente nervoso da mesa procurando imediatamente o meu globo ocular pelo chão. NADA. Deixei calmamente aquele bar e atravessei cambaleante em direção à praça.  Os sinos da São Sebastião bateram horrorizados. Uma da manhã. Senti medo. Solidão. Pavor de estar cego. Já um pouco distante dali, e mais seguro, sentei-me em algum banco de que não me lembro bem e procurei mais uma vez por meu globo ocular. Chequei amargamente nos bolsos da camisa. Pelo chão. Eu não sentia mais o meu olho esquerdo de verdade bater. Cogitei tê-lo perdido definitivamente. Segui andando, atordoado. A madrugada era fria como num conto de Edgar Alan Poe. (mas isso não é hora pra brincadeiras, Mário) Bom. Fui sentindo dor e solidão. Fiquei dando voltas e voltas pelo centro da cidade, talvez em busca de alguma resposta para a selvageria humana. Parei numa vendinha suja, já ali pelos arredores do porto hidroviário e pedi um conhacão daqueles de arrebentar o peito e cozinhar os miolos. Uma moça veio me trazer a bebida. Ela me olhou estranho enquanto limpava a mesa com um paninho fedido. O bar fedia. As pessoas fediam. A garçonete fedia. A cidade fedia. Tudo federia muito mais se eu perdesse o meu olho. 0 OLHO É O OLFATO DA ALMA. Arre que fui tomando goles carrascos de meu conhacão que me descia amargamente e me acariciava o fígado como a mão enluvada de Deus. A garçonete me olhava com tanta curiosidade e penúria que acabei arriscando:
- Diga-me sinceramente, meu bem, se eu perdi este meu olho, porque eu não o sinto mais bater neste lugar. 
- Está terrivelmente inchado que não dá para ver bem, meu senhor. Ela disse. Depois ela sugeriu que eu fosse olhar no espelho do banheiro, mas achei melhor que não, e acreditei nela e pedi a ela uma outra dose de conhacão que me foi servido prontamente. Duas doses daquela bebida de alma negra e reluzente seria o bastante para eu continuar andando e pensando na lógica do ódio humano – e não obstante toda a desgraça sofrida, parecia ser aquela, uma noite maravilhosamente agradável e doce. Paguei as doses e segui pensando: tudo vão lhe roubando bem devagar; a esperança, a alma, os sonhos, e agora o olho. O olho que tudo vê e que tudo sente. As glórias do céu e do inferno. Mas nada nos destrói ou enfraquece. Só nos deixam um pouco mais humanos e pensantes. Resolvi bater na casa dela àquela hora da noite.  Explicar a ela o que aconteceu e pedir que tomasse as providências que cabiam a qualquer mulher de sensatez humana. Bati na porta dela às duas da manhã. Foi ela mesma que atendeu. Tomara até um susto em me ver ali naquele estado deplorável da alma:

   - Que foi isso, Mário?
   - P.J me acertou este olho com uma garrafa. 
  - Meu Deus! Entra! Ela disse. Entrei. Sentamos em um sofá. Tudo ali parecia fora de órbita. De lugar.
   Mas aí eu disse pra ela:

  - Não sinto mais ele aqui batendo. Acho que finalmente o perdi.
 - Está muito inchado para ver se perdeu. Vou pegar uma compressa de gelo para baixar o inchaço. Ela disse. O outro olho que estava vivo e que acompanhava tudo impassívelmente do outro lado do espaço observou com certa malícia que ela usava uma camisolinha linda e bem curtinha, cor de limão, e que seu rosto continuava redondo e lindo com uma nádega infantil e doce. Ela iria cuidar de mim agora.  Posicionou-me em seu colo e comprimiu  com delicadeza o pano molhado e gelado em cima do inchaço do olho. Fui me sentindo melhor.

  - Não usarei um tapa olho e muito menos um maquinismo de vidro no lugar. Saberei muito bem conviver com este buraco.
  - Deixa de besteira, o olho está no lugar. Foi só um baque. Me olhou e sorriu.
  - A culpa é sua, Berenice. Você tem um dedo podre para os homens.  
  - O quê que eu posso fazer?
   Ficamos em silêncio. Depois eu disse:
  - E se ele voltar?
  - Tranquei as portas e reforcei os cadeados. Vai ficar seco de gritar que não abro. Fica calmo.

    Fiquei ali no seu colo como uma criança sentindo o perfume de suas coxas brancas. As suas varizes rosadas. Ai ela levantou-se e, sensualmente descalça, foi até a cozinha, retornando de lá com dois copos e uma garrafa de vinho. Bebemos. E quando meu olho finalmente voltou á vida, eu pude olhar outra vez aquele seu sorriso de rosas naquele seu rosto de leite. A iluminária toda azul no centro da sala...   

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

O ATAQUE

Olha, eu não sei o que dizer. Tampouco explicar a origem daqueles homenzinhos. Mas o fato é que eles surgiram de algum lugar. E vieram furiosos e aos montes...

***

Florêncio Jardim preparava-se para morder um belo pedaço de frango frito que sua esposa carinhosamente havia deixado pronta antes de partir quando um homenzinho passou correndo por entre suas pernas atravessando o vão da sala. Caralho! Florêncio Jardim largou o que fazia e inclinou-se para olhar melhor. O homenzinho ficou ali parado, no canto da sala. Florêncio Jardim foi até lá de gatinhas para olhar com detalhes. O homenzinho tinha aproximadamente 12 centímetros de altura, isso mesmo, e, acuado, agitava bastante os bracinhos.  Como explicar isso agora? Florêncio Jardim pensou, sorrindo. Aproximou-se bem da espécimen quando esta soltou-lhe uma catarrada  segura na imensa cara do gigante e correu veloz para o outro lado da sala. Ora veja, nunca alguém havia lhe cuspido na cara daquele jeito, nem mesmo o corretor de imóveis ou o vidraceiro da esquina, pensou bastante irritado, Florêncio Jardim. Partira na captura dele. Só podia estar em algum lugar daquela casa. Viu quando a sombra apequenada disparou pra cozinha e meteu-se entre as panelas. Furioso, Florêncio foi botando todas elas ao chão até se deparar de novo com a criaturinha atrás do saleiro. Aproximou o seu nariz grande do homenzinho e perguntou:
“Quem é você afinal?”
“Que importância tem isso?” É verdade, o homenzinho tinha razão. Ele dessa vez avançou no gigante mordendo-lhe em cheio o nariz, partindo novamente em disparada. Aquilo não podia estar acontecendo com ele.  Nunca fora tão humilhado assim. Desesperado saiu à caça do homenzinho outra vez. Mas nem um sinal dele. Atordoado, afundou-se no sofá. Gotas de suor pingavam-lhe do Pomo de Adão. O frango esfriava no prato. Àquela altura, decerto, havia perdido o sabor. Como a vida e todas as coisas ao redor. Tudo enfim, parecia encerrado ali (tratando-se obviamente de mais uma alucinação sua) quando, aterrorizado, vira sair debaixo da porta do quarto, centenas de homenzinhos e mulherzinhas. Só pode ser uma foda de sonho, pensou novamente Florêncio Jardim quase não acreditando mesmo no que via.  Mas o que os seus olhos grandes testemunhavam era uma realidade palpável. Seus dias estavam contados. Os homenzinhos avançavam contra ele cantando uma espécie de hino. Atirou alguns apetrechos que tinha ao seu alcance sobre a horda. Alguns corriam desesperados e com medo, já os outros avançavam obstinados contra ele. Apareciam de todos os cômodos da casa. Um verdadeiro exército implacável de seres bem pequenos e desprezíveis.  E estavam revoltados. Furiosos com ele. Mas se ele capturasse ao menos alguns deles guardaria em uma caixa de sapatos e os forçaria a lutar com as suas caranguejeiras de patas peludas que havia no quintal de sua casa, impondo assim, a sua força e importância impoluta sobre aqueles seres diminutos e de alma bem pequena. Cogitou. Mas ele não conseguia pegá-los. Eram muitos e rápidos demais. E como se não bastasse não paravam de proliferar surgindo em centenas de milhares, vindos do ralo da pia, detrás dos retratos, descendo aos montes da parede e do espartilho da esposa. Todos gritavam, de longe, avancem homens! Eram centenas, milhares de homenzinhos diminutos e ferozes que se reproduziam como uma praga de gafanhotos vorazes. O mais bravo usava um jaleco verde e óculos com aros de metal. No fundo as criaturinhas tinham era medo de Florêncio, porque na verdade, custavam a avançar sobre ele, posto que o gigante era um homem furioso e sofria de terríveis enxaquecas.  A situação, pois, se agravava. Florêncio estava agora acuado. Espremido no canto da sala. Cercado de homenzinhos por todos os lados. Não sabia o que fazer. A casa encheu-se daqueles sereszinhos impertinentes que agora cantavam hinos de vitórias, tendo em vista, a eminência derrota de Florêncio. E não havendo mais escolha, portanto, Florêncio desistiu de lutar. Mal se podia divisar agora o seu corpo, coberto que estava por uma massa compacta e cinzenta de humúnculos que lhe mordiam vorazmente os dedos das mãos, dançavam na ponta de seu nariz - fazendo gestos obscenos - e ainda por cima entoando uma espécie de cântico que dizia, “Passarás em silencio por meu amor/ e fingirei um sorriso/ um leve e doce e sorriso.” Decerto que a canção era irônica e que não havia nenhum sentido. Não obstante, eles cantavam felizes da vida, certos da grande vitória sobre o gigante. Uma lagrimazinha ofendida brotava agora dos olhos resignados dele. Somente com a cabeça de fora, Florêncio Jardim ainda avistou o seu cachimbo na parte mais alta do armário de vime da sala. Ao menos uma última cachimbada antes dele ser tragado de vez, pensou.  Mas já era tarde. A morte é mesmo incompreensível. Nada de foices ou túnicas negras. Viria em forma de homenzinhos implacáveis. Eles agora penetravam-lhe todos os orifícios, cu, nariz, olhos, ouvidos, boca; a enorme boca que ele teimava inutilmente em mantê-la fechada. Os homenzinhos agora começariam a explorar todo o interior de seu corpo.